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Alemanha tem cartas inéditas de Guimarães Rosa

Elas foram enviadas ao tradutor Curt Meyer-Clason: "a correspondência trocada comigo é, talvez, aquela em que o escritor mineiro se expõe mais na sua face de criador, é um auto-retrato." Por Sheila Grecco, especial

Por Agencia Estado
Atualização:

Segredos das veredas do Grande Sertão, de Guimarães Rosa, permanecem intactos em um baú de uma casa antiga no centro de Munique. Lá se encontram correspondências inéditas do escritor que só foram reveladas recentemente por Curt Meyer-Clason. "Nunca me opus à publicação desse material, mas não sou crítico nem propagandista literário. Hoje, aos 90 anos, e já sem forças para cuidar de questões burocráticas, entendo que as cartas são, antes de uma propriedade particular, parte do patrimônio brasileiro", declarou o tradutor alemão, em entrevista exclusiva ao Estado. Rosa é o autor brasileiro mais lido, treslido e, contraditoriamente, mantido inédito pela crítica, no que toca à correspondência alemã. No 2.º Congresso Internacional sobre Guimarães Rosa, que se realizou na PUC-MG, em Belo Horizonte, na semana passada, reunindo os maiores especialistas no assunto, muito se discutiu sobre a necessidade de decifrar na obra a dimensão da história e da política brasileiras a partir de categorias estéticas - tese defendida por Willi Bolle, Benjamin Abdala Jr., José Miguel Wisnik, Kathrin Rosenfield -, mas não se mencionou nada sobre a correspondência inédita do autor. "Essa notícia é uma surpresa. Pensei que toda a parte epistolar já tivesse sido publicada. Não sabia que Clason tinha, ainda, cartas inéditas com ele. Obviamente, só cabe a ele julgar se as cartas têm ou não um tom pessoal e se podem vir a público. De qualquer maneira, é preciso lutar pela publicação delas. As cartas trocadas com o tradutor italiano Edoardo Bizzarri e, posteriormente, transformadas em livro, são excelentes, extremamente reveladoras. Sendo Clason o melhor dos tradutores de Rosa, obviamente a publicação desse material iria trazer mais pontos de vista a um autor que jamais foi unilateral", afirmou o crítico literário Benedito Nunes, um dos maiores especialistas na obra de Rosa. "A publicação da correspondência inédita entre Rosa e seu tradutor alemão se faz da mais alta importância. É um assunto que merece o empenho da crítica brasileira", destacou Willi Bolle, professor de literatura da USP. Transcorrido mais de meio século de leituras, desde Sagarana (1946), descobre-se que muitas outras veredas ainda precisam ser trilhadas. A fecunda correspondência entre Curt Meyer-Clason e Guimarães Rosa estende-se do início de 1958 a meados de 1967. Cópias e alguns dos originais foram depositados no arquivo Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, em 1973. Tais textos já foram objeto de estudo de pesquisadores, como Maria Apparecida Bussolotti, da Unesp, e, mais recentemente, Marcus Mazzari, da USP. Porém, a maior massa de documentos se encontra, ainda, na casa de Meyer-Clason: trata-se de 80 cartas, das quais, pelo menos, 38 são de autoria de Rosa. Curiosamente, não se levou adiante, até hoje, o projeto de publicá-las. Co-tradutor - A correspondência surgiu de uma necessidade pragmática. O tradutor recorreu ao autor para tentar solucionar os problemas com os quais se deparava ao tentar "transplantar" uma obra tão revolucionária como a de Rosa para o alemão. Rosa atuava quase como um co-tradutor, sugerindo mudanças, aprovando ou reprovando as opções. "A correspondência trocada comigo é, talvez, aquela em que o escritor mineiro se expõe mais na sua face de criador, é um auto-retrato. São textos que revelam a sua dedicação à obra, à filosofia, à religião e à terra", define Clason. Oscilando entre o mundo privado e o público, o prosaico e o poético, as cartas são documentos trocados por companheiros de ofício. Meyer-Clason reconheceu que, se publicadas, poderão atrair a leitura de um grupo restrito de pessoas, como críticos e exegetas do autor. Mesmo assim, ele considera tais textos preciosos instrumentos de análise e teme pelo futuro desse material. "Manifestei meu interesse à Nova Fronteira, que me pediu para enviar pelo correio todos os originais que eu tivesse. Eu disse: ´Não posso largar as cartas originais do Rosa dirigidas a mim, mas estou pronto a apresentar todo esse material a um representante de vocês na Alemanha.´ Jamais recebi nenhuma resposta. Não posso me desfazer desses documentos sem um futuro definido", afirmou. Procuradas pela reportagem, a família de Rosa e a assessoria de Imprensa da Nova Fronteira, editora que detém os direitos de publicação do autor, não souberam dar detalhes do assunto. A Nova Fronteira limitou-se a dizer que planeja relançar toda a obra de ficção de Rosa ainda este ano e alegou desconhecimento em relação às cartas. Mesmo o relançamento do romance e dos contos é assunto polêmico entre especialistas. Os desenhos, dentre outros os de Poty, ilustrações acompanhadas à lupa pelo autor para a composição das orelhas e índices de seus livros publicados inicialmente pela José Olympio, são ignorados pela Nova Fronteira. "Muito da significação real da obra tem sido desprezada nos relançamentos", afirma Clason. Meyer-Clason é hoje o mais respeitável intermediário entre as culturas alemã e sul-americana, tradutor de um sem-número de autores, como Carlos Drummond, Jorge Amado, García Márquez e, mais recentemente, Raduan Nassar. Rosa sempre elogiou o trabalho de Clason, como revelam as cartas inéditas. Ele chegou a escrever que a língua de Goethe era a mais apta a captar e refletir todas as nuances da língua e do pensamento que tentava vazar os seu livros. Vargas - O tradutor alemão viveu no Brasil nas décadas de 30 e 40. Preso em 1942 pela polícia de Porto Alegre, o intelectual amargou um processo judicial e a condenação de 20 anos de reclusão no presídio da Ilha Grande. Durante a ditadura de Vargas, seu julgamento foi anulado por ter sido considerado inválido. É, ainda, doloroso para ele falar sobre a descoberta, em 1998, de documentos que denunciam o seu suposto trabalho como agente nazista no Brasil. "Nunca fiz espionagem, não fui membro do partido e a tal confissão que a polícia apresentou é falsa, pois foi obtida sob tortura. Não tenho mais nada a falar sobre isso", desconversa Clason. Se a culpa alemã é assunto tabu, Guimarães Rosa é, por outro lado, tema sobre o qual Meyer-Clason não mede tempo ou palavras. Além das cartas inéditas, ele revelou que acaba de verter para o alemão o volume de poesias Magma, só publicado pela família após a morte de Rosa. O trabalho, iniciado há dois anos e cuja revisão só terminou recentemente, não tem destino definido. O tradutor afirmou ter enviado as provas a uma editora alemã, que alegou falta de verbas para a publicação. "Os editores alemães de hoje são comerciantes. Estão atrás de livros e não de obras. De qualquer maneira, jamais pensei na sua comercialização. Fiz a tradução por iniciativa própria, para matar as minhas eternas saudades do Brasil e por acreditar que é um volume ainda negligenciado pelos estudiosos." Apesar do caminhar titubeante, dos gestos já frágeis, em razão dos reiterados problemas de saúde nos últimos tempos, às vésperas de completar 91 anos, no dia 19, Meyer-Clason ainda se alimenta da literatura. Ele acaba de traduzir os diários do português Miguel Torga e dar um seminário em Berlim sobre a obra de Jorge Amado. Foi com essa paixão pelos livros que ele concedeu essa entrevista ao Estado, em Munique, e espicaçou os herdeiros do autor, cedendo uma carta inédita de Rosa. "Talvez seja um meio de chamar a atenção para esse material." E, pediu, singelamente, com os olhos lúcidos e o vivo sotaque teuto-brasileiro: "Faça perguntas simples, porque Guimarães Rosa é, por si só, complexo demais. E eu sou apenas um tradutor." Como explicar que, transcorrido tanto tempo depois da morte de Rosa, em 1967, nenhuma editora tenha se interessado pela publicação de toda essa massa documental que se formou entre o sr. e Guimarães Rosa? Curt Meyer-Clason - Realmente não sei dizer, todo processo no Brasil é muito lento. Talvez seja burrice dos editores, talvez, pura ignorância. Nunca saí alardeando a existência desse material, mas jamais me opus à sua publicação. Talvez pensem que as cartas vão comprometer Rosa politicamente ou ideologicamente. Muito pelo contrário, elas revelam muito de sua obra, da sua verdadeira face de criador. Posso dizer que os herdeiros de Rosa nunca me procuraram. Excetuando dona Aracy (mulher de Rosa), que trocou algumas cartas comigo e é uma pessoa muito educada, posso dizer que os demais jamais me dirigiram a palavra. Eles são movidos por uma mentalidade tacanha e burguesa. Mas isso não me interessa, o que eu pude fazer pelo Brasil já fiz. O senhor escreveu, certa vez, que a sua relação com a literatura só se fez íntima a partir da experiência do cárcere. Foi assim que começou a paixão pela literatura brasileira? Devo isso à minha estada no Brasil, do Natal de 1936 a maio de 54, como funcionário de uma firma norte-americana que tinha sucursal em São Paulo. Depois, durante a 2.ª Guerra Mundial, fui internado na Ilha Grande. Coube ao cárcere o melhor de mim, quer dizer, do Brasil. Lá eu fiz um salto da vida comercial e, possivelmente milionária, para a vida literária. Acabei ganhando uma nova visão do mundo: a visão mágica que me permitiu fazer amizade com Guimarães Rosa. De volta à Alemanha, comecei a trabalhar como tradutor de sua obra e escritor. Rosa foi um co-tradutor de sua obra no exterior. A vasta correspondência com os tradutores revela como ele intervinha no processo. Quais seriam as razões para resultados tão distintos e, na maioria das vezes, tão decepcionantes? A Europa vive do "cogito, ergo sum" ("Penso, logo eu sou.") Rosa disse: "Eu sinto, logo eu sou." Aqui na Europa, tem-se a vida lógica; no Brasil, a vida é mágica. Essa é a diferença fundamental. Por isso, muitas traduções, como a inglesa e francesa, não satisfaziam Rosa. A tradução inglesa tem a fraseologia de Nova York. É de uma banalidade que não pode alcançar o sistema rosiano, o misticismo do sertão. A lógica da sintaxe francesa não pôde captar a magia de Minas. Devido ao conteúdo transcendental, ao ritmo poético, quase que metafísico da língua alemã, creio que o alemão foi a língua que melhor conseguiu se adaptar ao original. O termo "Nonada", que abre "Grande Sertão" e que é de extrema importância para a significação do romance, virou, na tradução inglesa, apenas "nothing". Como resolveu essa reinvenção rosiana na edição alemã? "Nonada" era um dos 8 mil neologismos do Rosa e intraduzível para o alemão. Transmutei isso numa frase principal com quatro palavras de uma sílaba cada uma para tentar manter o impacto: "Hat nichts auf sich." "Nonada" é o que não importa, o que, literalmente, nada tem em si e que, ao mesmo tempo, dá uma circularidade ao livro e à narrativa. Ou seja, um termo que tudo pode conter. Riobaldo, a personagem mais ilustre de Rosa, é um jagunço que vira proprietário de terras e parece estar sempre tentando uma milagrosa coerência entre elementos tão ambíguos, ele representa o letrado e iletrado, o moderno e arcaico, o rico e pobre. Riobaldo seria, como disse Rosa, "apenas o Brasil"? Rosa queria fazer uma pintura de sua terra e inventou para isso um herói, um representante do sertão. Literariamente, nota-se uma influência de Fausto, de Goethe. Tantas experiências íntimas confluem para um conjunto de visões cósmicas, de que trata a obra de Rosa. Concordo, como leitor, que Riobaldo é uma alegoria do Brasil, mas não me atrevo a afirmar isso taxativamente. O social não é o ponto principal da obra de Rosa, como comprova cada frase do romance dialógico que é Grande Sertão. Em depoimento ao crítico alemão Günter Lorenz, numa rara entrevista concedida pelo autor, Rosa disse: "Embora eu veja o escritor como um homem que assume uma grande responsabilidade, creio que não deveria se ocupar de política." Não acha que a crítica confundiu, muitas vezes, o autor com o diplomata Guimarães Rosa, evitando atribuir a seus escritos um posicionamento político? A verdadeira literatura começa onde a política termina. Guimarães Rosa é um sertanejo, um cidadão, tem compromisso com a população de seu Estado natal, é cristão, um homem da natureza e um homem de futuro, aberto ao mundo. Mas um escritor da abertura e da envergadura do Guimarães Rosa não se pode limitar pelas vistas e convicções do dia-a-dia político. Ele me disse certa vez: "Temos de escrever para os próximos 600 anos." Jorge Amado, nos fins dos anos 30, foi membro do Partido Comunista. Mais tarde disse: "Passei anos de erro político que limitaram a minha obra." O panfletarismo é uma amarra e Rosa sempre optou por se desfazer dela. Nos últimos anos, houve um boom de leituras cabalísticas e esotéricas sobre a obra de Rosa, muitas reduzem o sertão ao estreito anagrama do Ser Tao. Isso seria perigoso? Não se corre o risco de transformá-lo em um Paulo Coelho erudito? O que posso dizer é que Rosa é tão esotérico como o seu exterior. Ele foi o homem mais apegado à terra natal que jamais conheci. Todos os colegas dele, escritores, romancistas, etc., eram citadinos e ele permanece, até o fim, como simples homem do sertão. Sempre voltou para lá para pegar um cavalo e atravessar o sertão. Esse aspecto místico, indubitavelmente, está presente também nos livros. Antonio Candido diz, já na primeira resenha sobre Sagarana (1946), que a literatura de Rosa foi construída, simultaneamente, no plano da erudição e do sertão. Como o senhor, que tanto conviveu com seus textos, definiria a revolução provocada por Rosa na literatura brasileira? Ele tinha esses dois lados, o de poliglota e o de sertanejo, que soube combinar de uma maneira ímpar. O centro dele é o globo, a Terra, o próprio cosmos. A erudição vinha a ele naturalmente e também através de sua formação universitária, a medicina e a diplomacia. Mas a prova de que a vida mundana "cultivada" entre aspas não foi suficiente e não lhe agradava é explícita no dia em que ele simplesmente abandona a reunião diplomática e política em encontro em Gênova, em 65. A vida comezinha dos diplomatas era, para ele, lamentável. Ele depreciava tudo aquilo que era de segunda mão. E cada frase que ele escreveu prova isso. Eu sempre convivi com a literatura brasileira e sempre tive a consciência de que Guimarães Rosa era o maior de todos os autores, porque visava ao futuro através da linguagem. Em Rosa, o homem e a linguagem são um só. E a linguagem, após a experiência rosiana, não retorna para si mesma de mãos vazias. Sheila Grecco é jornalista, historiadora e doutoranda em teoria literária e literatura comparada pela USP

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