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Alberto Manguel leva Alice ao país da política

Por Agencia Estado
Atualização:

Quando Alberto Manguel tinha ?8 ou 9 anos?, alguém lhe deu um exemplar de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho. Nessa primeira leitura, não entendeu tudo, mas o livro lhe marcou para todo o sempre. ?Alice foi uma revelação, um espelho para mim, e o é ainda hoje; suas passagens se prestam a discutir quase qualquer tema, o que vale para muitos outros livros; a Bíblia é também um livro infinito?, afirma o canadense de origem argentina, em entrevista por telefone. Ele também relaciona os livros que foram infinitos por um dia ? e inclui, entre eles, O Centauro no Jardim (LP&M), de Moacyr Scliar, e A República dos Sonhos (Record), de Nélida Piñon. Manguel é autor de Uma História da Leitura (Companhia das Letras). Publica agora um livro de ensaios todo marcado por Alice ? e que, segundo ele, completa o seu livro anterior. ?Quando terminei Uma História da Leitura, um dos aspectos que faltavam no livro era a relação entre a vida política e social e a leitura; acredito que existe uma responsabilidade cívica do leitor que meu livro não dava conta.? No Bosque do Espelho (Companhia das Letras, 296 págs., R$ 27,50) é um livro erudito, mas, ao mesmo tempo, simples. Manguel evita construções tortuosas, procura deixar suas posições claras, explica tudo o que pode. A conseqüência disso é uma coleção de agradáveis aulas de literatura e política, que poderiam ser lida por um estudante secundarista sem o terror que os livros de ensaio costumam causar nessa fase da vida. ?Todas as leituras são subversivas?, escreve Manguel no primeiro texto do livro. ?Um primeiro-ministro canadense arranca uma ferrovia e chama o ato de ?progresso?; um empresário suíço trafica produtos de pilhagem e chama isso de ?comércio?; um presidente argentino protege assassinos e chama isso de ?anistia?. Contra esses enganadores, o leitor pode abrir as páginas de seus livros. Nesses casos, ler nos ajuda a manter a coerência no caos, não a eliminá-lo.? Investigando o caos, Manguel escreve sobre judaísmo, homossexualismo, escritores engajados como Julio Cortázar, outros menos, como Borges, e livros, muitos livros. Porque, explica, embora também escreva, gosta mesmo de ler. ?Escrever é um esforço de se comprometer com uma só leitura; ao ler, todas as respostas são possíveis; quando você escreve, só uma.? Embora acredite na leitura, Manguel não pode ser classificado como um sonhador. Enxerga o principal limite a uma obra de arte: o homem. Manguel é especialmente cruel com o escritor e político peruano Mario Vargas Llosa. Para ele, Llosa é um caso raro, mas não único, da história da arte: é um escritor que não aprende com a própria obra. Para Manguel há dois Llosa, absolutamente contraditórios: o escritor de A Cidade e os Cachorros e o político que se diz discípulo de Margaret Thatcher. A oposição de Manguel a Llosa vem, em parte, do apoio do peruano ao projeto de anistia aos militares argentinos responsáveis pelo desaparecimento de civis durante a ditadura no país. Mas também às posições liberais adotadas por Llosa, que aceita como inevitável e mesmo necessária a destruição da cultura indígena. O título do ensaio é O Fotógrafo Cego. Para Manguel, o Llosa escritor não pode ser descartado, mas o Llosa pessoa é ?abominável?. Assim como Llosa não teria aprendido ao escrever, Manguel acredita que nem sempre os leitores aprendem quando lêem. ?Comparo ato de ler com o ato erótico: como é possível que o ato de amor não converta a pessoa em alguém melhor? Poucos de nós mudamos de vida quando ficamos diante de uma obra de arte, mas a culpa não é dela; essa possibilidade continua a existir.? Como o exemplo mais radical dessa realidade, cita o verdadeiro caso de amor entre os nazistas e as obras de Mozart. Ainda que a história registre fatos como esse, Manguel diz esperar ?tudo da literatura?. Por meio dela, afirma, é possível o entendimento de uma realidade política. E, para quem não gosta de política, defende a tese de que todo ser humano toma uma posição política, ?ainda que essa posição seja tapar os ouvidos, os olhos e a boca?. ?A sociedade é uma estrutura viva, que precisa evoluir, crescer, e isso depende dos debates intelectuais que se desenvolvem nela; uma sociedade só vive por meio do debate?, defende. Alguns textos de Manguel parecem ficar pela metade, deixando de explorar caminhos abertos pelos próprios ensaios. Segundo ele, isso ocorre por dois motivos: o primeiro, óbvio, é que nenhum texto é completo; o segundo, afirma, é uma falha sua. Uma vez que termino um texto, é muito fatigante para mim voltar a ele; além disso, não sou muito organizado, me distraio facilmente?. Alguns, admite, mereceriam uma atenta revisão, como o ensaio que trata da literatura homossexual. ?Houve muitas mudanças, não sei se hoje ainda se pode falar dela como se fosse um ramo particular da literatura?, explica. Nem sempre é possível encontrar na literatura, diz ele, uma expressão (ou reflexo, já que Manguel utiliza a figura do espelho) da realidade presente. ?Às vezes, a literatura oferece espelhos para o futuro?, argumenta. ?Muitos livros não podem ser lidos corretamente no tempo em que são lançados: é o caso de Moby Dick, que por muito tempo foi encarado apenas como um romance de aventuras.? Na sua opinião, o mesmo ocorreu com Macunaíma, ?que ainda hoje não é visto como um espelho da realidade brasileira?. Apesar de citar tantos autores brasileiros e entrar na questão do conflito ideológico na obra de Llosa, Manguel, modestamente, afirma não acompanhar a literatura latino-americana, especialmente a argentina: ?Morando no Canadá, tenho pouco acesso a ela.? Ele, que escreve em inglês, sua primeira língua (ele aprendeu espanhol apenas aos 7 anos), na verdade, diz não gostar do termo latino-americano, por os países do continente terem intelectualidades muito distintas. Sobre o assunto, brinca que é mais conhecido no Brasil do que na Argentina ? ?Quiçá os argentinos são mais críticos?, diz.

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