Ajzemberg narra drama de um personagem sem saída

O romance A Gaiola de Faraday retrata o impasse de um pai de família, de meia-idade, subitamente transtornado pela morte de uma antiga namorada

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Por Agencia Estado
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A gaiola de Faraday é um sistema ultrapotente de pára-raios, composto por uma malha de cabos de cobre em forma de retângulos, inspirado numa experiência do físico inglês Michael Faraday (1791-1867). Em seu célebre experimento científico, Faraday colocou um eletroscópio (aparelho para a observação dos fenômenos eletrostáticos) dentro de uma gaiola metálica carregada ao ponto de produzir faíscas e verificou que, uma vez em seu interior, o aparelho não se carregava. O personagem central desse novo romance de Bernardo Ajzemberg, o devastado Enzo, viu a si mesmo durante muito tempo, e à função de pai que se esforçava para cumprir, como um potente pára-raios, capaz de proteger a família dos ataques externos. Um dia, depois de saber do suicídio de uma antiga namorada, infeliz, percebeu que se enganava; e aos 46 anos, mas com o espírito de um rapazote, fugiu de casa. "Essa tal gaiola não existe no mundo dos homens", esforça-se para tranqüilizá-lo mais tarde o filho Lúcio, ele próprio envolto pelo manto de relações suspeitas. Mas nem o consolo proposto pelo rapaz ameniza a decepção de Enzo. Ela se estende à família e particularmente ao próprio filho, contaminação expressa na epígrafe tomada por Ajzemberg ao poeta Fabrício Carpinejar: "Descobri tarde:/ Tua única residência/ é distanciar-se de casa." Enzo não sabe o que quer. "Se alguém lhe perguntasse qual o cerne do projeto, não saberia responder com clareza", Ajzemberg relata. Perambulando pelas ruas de São Paulo como um pedinte, e deixando atrás de si uma mistura confusa de preocupação e alívio, ele é um personagem muito adequado aos tempos de hoje, quando a noção de identidade e os papéis habitualmente atribuídos aos homens, de pai, marido, amante e provedor, se evidenciam frágeis, insustentáveis mesmo, constatação que confere à vida a aparência de uma máscara. Enzo vai para um albergue de miseráveis, envolve-se com a dentista Gisele, persegue a distância o filho pelos parques da cidade, entrega-se ao desalento. É um personagem sem saída e o romance de Ajzemberg é o relato dessa estagnação. Indiferença - A história de Enzo poderia dar um drama, mas Bernardo Azjemberg a relata com contenção absoluta, que se acerca da indiferença. E só porque é narrada assim, friamente, ela consegue ganhar contornos contemporâneos; se o combate entre pai e filho é milenar, mudam porém seus elementos de composição. O romance de Ajzemberg é bem mais refreado e seco que seu livro anterior, Variações Goldmann; de alguma forma, parece desmenti-lo, ou (como numa questão de família) a ele se contrapor. Um personagem tão derramado e sem bordas como Enzo, contudo, parece pedir essa narrativa cheia de freios e a estratégia de Ajzemberg dá testemunho da tese de que cada personagem exige de seu autor um determinado tom e uma estratégia diferente para lidar com as tensões ficcionais. Ao contrário do que ocorre no mundo humano, no qual se pede coerência e lógica às pessoas, um escritor só chega à maturidade quando, como ocorre aqui com Bernardo Ajzemberg, é capaz de mudar de tom e adaptar-se, numa metamorfose, a cada relato. Ajzemberg contrapõe ao mundo frágil que tem como objeto uma narrativa em expedientes clássicos, diálogos comedidos, cartas e um certo tom avaro, mas cortante. Seu livro faz lembrar a observação de Chekhov, segundo a qual a função de um escritor é bem mais limitada do que costumamos supor. "Parece-me que os escritores não devem resolver questões tais como Deus, o pessimismo, etc.", o dramaturgo russo escreveu, numa carta ao jornalista Suvórin. "O papel do escritor é apenas retratar quem falou ou pensou a respeito de Deus ou do pessimismo." Também em Ajzemberg, os personagens dialogam com autonomia, empurrados por forças invisíveis; e nada querem decidir, permanecendo em compasso de espera, de algo que não vai acontecer, ou que já aconteceu. É nesse universo perfurado que devem subsistir; sua salvação, se é que ela existe, está numa estrutura frágil e delicada como a gaiola de cobre que inspirou Faraday. É muito eficaz, então, a idéia da gaiola de Faraday, quebradiça, delicada, mas ainda assim, ou por isso, ultra-eficiente. Num mundo em que portas blindadas, muralhas eletrificadas e casas em forma de bunkers se mostram, afinal, tão ineficientes, é inspirador recordar a experiência do físico inglês, mostrando que uma gaiola, de aparência frágil e devassada, pode ser muito mais potente que superfícies fechadas e sólidas. A gaiola de Faraday redesenhada por Ajzemberg serve, numa perspectiva mais ampla, como metáfora da própria literatura, de aparência impotente e débil, feita de nada, mas apesar disso capaz de contrapor resistência às descargas de padronização e indiferença desferidas pelo mundo contemporâneo. A Gaiola de Faraday. Livro de Bernardo Ajzemberg. Editora Rocco, 129 págs., R$ 18,50.

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