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'Ainda temos flecha'

Há 30 anos, a Blitz derrubava o mau humor do rock nacional com cores e ironia e agora um documentário conta tudo

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Por Julio Maria
Atualização:

A criação da juventude se deu em Saquarema, Rio de Janeiro, em um dia de verão de 1982. Seu autor é um surfista das antigas que odiava quando se referiam a ele como Zeca Mendigo - prefere Zeca Proença até hoje. Sem vontade de ser nada além do que já era, com uma vida que se resumia a pegar ondas na praia de Itaúna e a tocar rock and roll à beira da fogueira, Zeca rascunhou um refrão de cinco palavras que um dia poderia virar música, ou não. "Você não soube me amar, você não soube me amar." A letra criou asas e saiu voando da região dos Lagos para Ipanema. Caiu nas mãos de uma outra banda de rock, ganhou arranjos, solo de guitarra, estrofes gigantes, entrou em um estúdio e saiu aos milhares em formato de LP. Num país em que os velhos estavam tensos e os jovens pareciam velhos demais, Você Não Soube Me Amar era um choque de vida nos espíritos revolucionários da época. Ao ser lançada primeiro em EP (os disquinhos que traziam uma música de cada lado) e depois em LP, ajudaria a banda Blitz a sair vendendo mais de 1 milhão de cópias com um discurso ingênuo apenas na superfície. A história da canção que fez eclodir a banda Blitz em 1982, e que por tabela ajudou a criar o rock brasileiro dos anos 1980, será contada no documentário de curta duração chamado Mais de Três Foi o Diabo Que Fez, uma referência às quatro cabeças que assinam a música: Zeca Proença (o surfista autor do refrão), Evandro Mesquita (que recebeu o refrão de um amigo que tinha em comum com Zeca), Guto Barros (guitarrista da Blitz que pensou nos arranjos, harmonia e melodia), e o guitarrista Ricardo Barreto (que completou a letra com Evandro). Ao saber da poliautoria, Caetano Veloso disse a frase que batizaria o projeto. O filme deve estrear somente no circuito de festivais, em março. Os versos de Zeca foram sendo lapidados por um longo caminho até serem gravados no EP que tinha de um lado Você Não Soube Me Amar e, do outro, uma voz que repetia "nada, nada, nada, nada". A brincadeira vendeu 100 mil cópias em três meses. Sessenta dias depois de lançada, aparecia de novo no LP As Aventuras da Blitz. "Foi uma música criada em meio àquela cultura de surfe dos anos 80", diz Zeca Proença.O restante da letra de Você Não Soube Me Amar, o equivalente a 90% do todo, foi inspirada em um espetáculo que Evandro dirigia à época no grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, semente da Blitz que tinha como casa o Circo Voador, na divisa das Praias de Ipanema e Copacabana. "Existia uma cena onde o ator contracenava com seis ou sete garotas. Elas representavam na verdade uma mulher que, de tão boa, era várias em uma só. A letra estava sendo desenvolvida, mas, por ser grande e meio falada, estava difícil de ser musicada", diz o produtor do documentário, Daniel Accioly, 26 anos (nenhum dos parceiros de Accioly no projeto tem idade para ter curtido 1982 com a idolatria que se instalou nas rádios FM a partir da gravação da Blitz. O diretor Leonardo Souza tem 22 anos e a editora Tita Berredo, 24). A tarefa de fazer aqueles versos virarem música ficou com o guitarrista Guto Barros. Apenas com um refrão pronto, ele criou o riff de guitarra e musicou as partes.Quando o Circo Voador ficou pequeno para a Blitz, que tinha em sua formação o baterista Lobão e a bailarina e backing Fernanda Abreu, a censura cresceu os olhos. Nem tudo seria verde limão e rosa new wave para um grupo que chegava ao Olimpo tão rápido. Cruel, Cruel Esquizofrênico Blues e Ela Quer Morar Comigo Na Lua receberam o carimbo de impróprias. Em sinal de protesto, Evandro e amigos riscaram a master do LP com um prego, fazendo com que todas as cópias saíssem com o que Evandro chama hoje de cicatriz. "A ideia era passar ao público a agressão que sofremos." Mais tarde, as duas músicas censuradas seriam lançadas em um novo compacto.Foi preciso ali dar um chute na porta, nas palavras de quem viveu os primeiros anos da década de 1980 sob a lona do Circo Voador. E pior, a porta estava fechada com cadeado. A música brasileira não estava para piadas, com artistas ainda tateando no escuro de uma ditadura traumática. O presidente João Baptista Figueiredo vinha em um processo de abertura mais lenta do que gradual e a inflação batia nos 200% ao mês. As rádios e TVs não tinham clima para festa. Os artistas ouviam a Blitz e torciam o nariz. Quando o segundo disco chegou, em 1983, com o nome de Radioatividade e dois cavalos de batalha, a balada A Dois Passos do Paraíso e a quase censurada Betty Frígida, não deu para segurar. A nova juventude estava criada. E o rock virou pop.Ninguém sabia ao certo no que aquelas brincadeiras todas poderiam dar. Evandro Mesquita lembra bem de quando o seu carrossel começou a girar. Vocês sabiam o que estavam fazendo naquele momento? Queríamos fazer música que a gente curtisse, os amigos, namoradas e família. Queríamos fazer o que não ouvíamos nas rádios. Ouve um período que nada acontecia depois dos Mutantes, Novos Baianos e Raul, fora os mestres Gil, Caetano e Chico. Mas a música da minha geração não tinha vez nem voz nas gravadoras, rádios e TVs. Antes de querer gravar não tínhamos a menor esperança de abrir essas portas das gravadoras e seus homens de terno. Depois dos primeiros shows, sentimos no bairro e na praia que nossa galera adorava e queria mais!Como foi que a classe artística viu a chegada da Blitz? Caetano Veloso falava da nossa Disneylândia pop. Gilberto Gil disse que demos uma blitz na MPB. Paulinho da Viola assistiu a um show nosso no Canecão e falou que começou a ter mais simpatias pelo rock. Dorival Caymmi foi ao camarim do Canecão nos abençoar. Roberto nos chamou para uma grande participação em seu especial de fim de ano. Rock, no momento, não era coisa séria demais?O Rio era mais o berço do samba e Sampa sempre foi mais rock and roll, mas tinha aquela onda dark, todos de preto e com cara de bandido. O que não tinha muito a ver com nossa realidade de praia, verão e cores. Viemos nessa contramão, o que incomodou muita gente. Estávamos impregnados de Bob Marley e sua sonoridade tropical com energia rock. Hoje, a Blitz segue na turnê sem fim. Enquanto houver bambu... tem flecha. / J.M.

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