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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Ah, Renata! Se todos fossem iguais a você

Leon Cakoff, meu caro. Você se foi há cinco anos, mas deve estar feliz, se é que daí pode ver o que acontece aqui. Fui à abertura da 40ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo, no Auditório Ibirapuera. Permitam-me o lugar comum, lugar digno de cinema. Estreia lotadíssima, muitos jovens, divididos em tribos, cada uma vestida de uma maneira, com seus brincos, piercings, tatuagens ou ternos (eu vi). Havia homem de mão dada com homem, mulher de braço dado com mulher, homem e mulher de mãos dadas, o mala do Malafaia espumaria. Sem esquecer cineastas como a Vera Egito.

Atualização:

Lembrei-me de que, nos anos 1950 e 60, explodiam mini festivais por São Paulo e todo o Brasil, e lá estávamos vestidos à la cinema novo-nouvelle vague, todos iguais. Calça e camisa jeans e sapato mocassim sem meia. Andar sem meia era uma ousadia. Fomos a geração que rompeu com a camisa e a gravata para entrar no cinema.

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A Unifrance realizou um festival, dei de cara com Catherine Deneuve, o vestido decotado, e aquele olhar. A Itália, em contrapartida, nos alegrou com Giulietta Masina, Lea Massari e e também francesa Annie Girardot. Um mini festival americano trouxe Tony Curtis, no auge de sua carreira, e Janet Leigh, que tinha acabado de fazer Psicose, portanto início dos anos 1960. A Cinemateca com Paulo Emílio Salles Gomes (que faria cem anos agora), Rudá de Andrade e Caio Scheiby promovia contínuos ciclos de Antonioni, Visconti, Marcel Carné, Cocteau, Bergman, Wajda, Eisenstein, Gabriel Figueroa, Luis Buñuel, porém, Leon, a esta altura, você devia estar com 12 ou 13 anos.

Os filmes eram exibidos no Bijou, na praça Roosevelt, ou numa sala do Ibirapuera, edifício da Bienal. Devorávamos o que aparecia – a livraria Francesa vendia a Cahiers du Cinema – , havia cinéfilos que “sabiam” tudo como Rogério Sganzerla, Helena Ignez, Jairo Ferreira, Alfredinho Sternheim, José Julio Spiewak, Mauricio Rittner, Plínio Sanchez e Rubem Biáfora que, com suas Indicações da Semana, foi pioneiros das fichas detalhadas de filmes, sim, e também nosso “papa” Almeida Salles.

Essa gente, Cakoff, que estava em tudo e em todas, a partir do bar Porta do Sol, na Sete de Abril, ou no bar do MAM, esse público que alimentava os festivais de todos os gêneros foi o embrião dessas plateias que hoje lotam a Mostra que chega aos 40. Você se foi, Leon, e se foi muito cedo, pessoas como você não deviam partir. Mas ficou a Renata de Almeida. Vocês tiveram dois amores. Um ao outro e a paixão pelo cinema. E a Mostra continuou, como vai continuar. Como se a Renata tivesse feito um voto.

Em toda mídia e redes sociais, ninguém falou do momento de emoção quando Renata surgiu ao palco e se dirigiu ao microfone. Sabemos que essa Mostra tem a marca do ímpeto, a coragem, a força e as batalhas dela e de sua equipe. Quando a tela se abriu e vimos, sei lá, cem ou mais pessoas que trabalham por trás, foi um aplauso só. Graças a Renata e a cada um deles, estávamos ali, e dali em diante poderíamos ver 322 filmes. Quantos festivais no mundo apresentam tantos?

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Renata de Almeida não só deu continuidade à Mostra como ampliou-a, mostrou como ela pode ser não só de São Paulo, porém, um dia, a Mostra do Brasil. Naquela noite, o representante do Sesc disse que muitas unidades da organização estarão exibindo filmes. A CPFL mostrou como a Mostra está também em Campinas e poderá avançar pelo interior. Os tentáculos (aqui no bom sentido) culturais dessa empresa são longos. A Secretária de Cultura de São Paulo revelou que muitos CEUs estão exibindo na periferia partes da Mostra e há adultos que estão vendo um filme na tela grande pela primeira vez na vida. Há cinemas de rua – uma raça em extinção – sendo reativados pelo interior, por causa da Mostra. Não é pouco.

Não ficou reduzido a um evento cultural para poucos “cinéfilos doidinhos” em meia dúzia de salas. Para onde olharmos hoje, ao lado de grandes diretores, filmes excepcionais, consagrados e etc, há o filme de um país estranho, de um país do qual jamais ouvimos falar, a obra de um diretor censurado, perseguido, exterminado, maldito.

Passaram-se décadas, tudo mudou, hoje filma-se até com celular, a tecnologia deu acesso democrático (e há coisas boas e ruins) a todos com alguma ou sem nenhuma ideia. Mas há algo que não mudou. Hoje, como ontem e anteontem, vejo pessoas, de todas as idades, com o Guia da Mostra nas mãos, selecionando filmes. Assim como fiz no passado, vejo minha filha Rita, montando sua lista, enviando aos amigos, as listas sendo cruzadas, discutidas em rede e resselecionadas. Oh, que dor tirar este filme porque está no mesmo horário de outro!!! Assim como fazíamos sorteios, tira este, põe aquele, eles continuam a existir. Pior que mega sena, difícil. E se este filme nunca for exibido normalmente? Qual vale a pena? Todos valem, daí a angústia, ansiedade, correrias, dias comendo lanches rápidos ou de barriga vazia e, vejam só, conhecendo gente que ama cinema. O espírito, a magia do cinema cobre a cidade por duas semanas.

Obrigado, Cakoff, por ter criado a Mostra, e por nos ter legado essa força que se chama Renata de Almeida que, pelo que se vê, foi a única promotora a não reclamar de nada, de recessão, crise, dificuldades, contrariedades – sabe-se lá quantas noites insones, as lágrimas, o estômago gelado – e colocar de pé a melhor mostra Internacional de Cinema de toda América Latina.

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PS: Tenho, emoldurado, o cartaz original do I Festival Internacional de Cinema de São Paulo, de 1954, que ganhei do autor, Alexandre Wollner. Uma preciosidade.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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