Lembrei-me de que, nos anos 1950 e 60, explodiam mini festivais por São Paulo e todo o Brasil, e lá estávamos vestidos à la cinema novo-nouvelle vague, todos iguais. Calça e camisa jeans e sapato mocassim sem meia. Andar sem meia era uma ousadia. Fomos a geração que rompeu com a camisa e a gravata para entrar no cinema.
A Unifrance realizou um festival, dei de cara com Catherine Deneuve, o vestido decotado, e aquele olhar. A Itália, em contrapartida, nos alegrou com Giulietta Masina, Lea Massari e e também francesa Annie Girardot. Um mini festival americano trouxe Tony Curtis, no auge de sua carreira, e Janet Leigh, que tinha acabado de fazer Psicose, portanto início dos anos 1960. A Cinemateca com Paulo Emílio Salles Gomes (que faria cem anos agora), Rudá de Andrade e Caio Scheiby promovia contínuos ciclos de Antonioni, Visconti, Marcel Carné, Cocteau, Bergman, Wajda, Eisenstein, Gabriel Figueroa, Luis Buñuel, porém, Leon, a esta altura, você devia estar com 12 ou 13 anos.
Os filmes eram exibidos no Bijou, na praça Roosevelt, ou numa sala do Ibirapuera, edifício da Bienal. Devorávamos o que aparecia – a livraria Francesa vendia a Cahiers du Cinema – , havia cinéfilos que “sabiam” tudo como Rogério Sganzerla, Helena Ignez, Jairo Ferreira, Alfredinho Sternheim, José Julio Spiewak, Mauricio Rittner, Plínio Sanchez e Rubem Biáfora que, com suas Indicações da Semana, foi pioneiros das fichas detalhadas de filmes, sim, e também nosso “papa” Almeida Salles.
Essa gente, Cakoff, que estava em tudo e em todas, a partir do bar Porta do Sol, na Sete de Abril, ou no bar do MAM, esse público que alimentava os festivais de todos os gêneros foi o embrião dessas plateias que hoje lotam a Mostra que chega aos 40. Você se foi, Leon, e se foi muito cedo, pessoas como você não deviam partir. Mas ficou a Renata de Almeida. Vocês tiveram dois amores. Um ao outro e a paixão pelo cinema. E a Mostra continuou, como vai continuar. Como se a Renata tivesse feito um voto.
Em toda mídia e redes sociais, ninguém falou do momento de emoção quando Renata surgiu ao palco e se dirigiu ao microfone. Sabemos que essa Mostra tem a marca do ímpeto, a coragem, a força e as batalhas dela e de sua equipe. Quando a tela se abriu e vimos, sei lá, cem ou mais pessoas que trabalham por trás, foi um aplauso só. Graças a Renata e a cada um deles, estávamos ali, e dali em diante poderíamos ver 322 filmes. Quantos festivais no mundo apresentam tantos?
Renata de Almeida não só deu continuidade à Mostra como ampliou-a, mostrou como ela pode ser não só de São Paulo, porém, um dia, a Mostra do Brasil. Naquela noite, o representante do Sesc disse que muitas unidades da organização estarão exibindo filmes. A CPFL mostrou como a Mostra está também em Campinas e poderá avançar pelo interior. Os tentáculos (aqui no bom sentido) culturais dessa empresa são longos. A Secretária de Cultura de São Paulo revelou que muitos CEUs estão exibindo na periferia partes da Mostra e há adultos que estão vendo um filme na tela grande pela primeira vez na vida. Há cinemas de rua – uma raça em extinção – sendo reativados pelo interior, por causa da Mostra. Não é pouco.
Não ficou reduzido a um evento cultural para poucos “cinéfilos doidinhos” em meia dúzia de salas. Para onde olharmos hoje, ao lado de grandes diretores, filmes excepcionais, consagrados e etc, há o filme de um país estranho, de um país do qual jamais ouvimos falar, a obra de um diretor censurado, perseguido, exterminado, maldito.
Passaram-se décadas, tudo mudou, hoje filma-se até com celular, a tecnologia deu acesso democrático (e há coisas boas e ruins) a todos com alguma ou sem nenhuma ideia. Mas há algo que não mudou. Hoje, como ontem e anteontem, vejo pessoas, de todas as idades, com o Guia da Mostra nas mãos, selecionando filmes. Assim como fiz no passado, vejo minha filha Rita, montando sua lista, enviando aos amigos, as listas sendo cruzadas, discutidas em rede e resselecionadas. Oh, que dor tirar este filme porque está no mesmo horário de outro!!! Assim como fazíamos sorteios, tira este, põe aquele, eles continuam a existir. Pior que mega sena, difícil. E se este filme nunca for exibido normalmente? Qual vale a pena? Todos valem, daí a angústia, ansiedade, correrias, dias comendo lanches rápidos ou de barriga vazia e, vejam só, conhecendo gente que ama cinema. O espírito, a magia do cinema cobre a cidade por duas semanas.
Obrigado, Cakoff, por ter criado a Mostra, e por nos ter legado essa força que se chama Renata de Almeida que, pelo que se vê, foi a única promotora a não reclamar de nada, de recessão, crise, dificuldades, contrariedades – sabe-se lá quantas noites insones, as lágrimas, o estômago gelado – e colocar de pé a melhor mostra Internacional de Cinema de toda América Latina.
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PS: Tenho, emoldurado, o cartaz original do I Festival Internacional de Cinema de São Paulo, de 1954, que ganhei do autor, Alexandre Wollner. Uma preciosidade.