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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Ah, os ateus...

Stalin e Mao Tsé-tung eram ateus. Franco, Salazar e Pinochet eram católicos. Mas todos foram ditadores

Atualização:

Eu uso a palavra ateu com muita resistência. Por vezes, é por falta de termo melhor ou possível. Em outras, adoto por preguiça: complicado explicar muitas coisas.  É definitivo: não gosto do termo e ele nunca me descreveu. Como muitos sabem, a origem grega do termo indica uma ausência: “sem Deus”. Dizer que sou ateu (sem Deus) é tão esclarecedor quanto dizer que não sou chinês, não sou mulher, não sou cabeludo e não sou jovem. Existe um essencialismo que define a crença como a condição universal e absoluta e quem não a tem deve ser ateu. O problema é que a palavra ateu fala do crente, não seu oposto. 

Um especialista da Autoridade de Antiguidades de Israel (IAA), mostra fragmentos dos Manuscritos do Mar Morto, em seu laboratório, em Jerusalém. A pesquisa de DNA nos manuscritos revelou que nem todosvieram do deserto onde foram descobertos. Cerca de 900manuscritos foram encontrados entre 1947 e 1956 nas cavernas de Qumran, acima do Mar Morto, na Cisjordânia. Os pergaminhos e rolos de papiro contêm textos em hebraico, grego e aramaico e incluem alguns dos primeiros trechosconhecidos da Bíblia. A pesquisa está em andamento há décadas.Foto: Menahen Kahana / AFP 

Séculos de teocracias estimulam o comportamento de buscar um vazio em quem não tem o preenchimento que desejamos ou escolhemos. Fui feliz e infeliz como católico devoto de terço diário e estudos bíblicos. Sou feliz e infeliz hoje, sem rosário (mas ainda estudando a Bíblia). Minhas angústias, compartilhadas com Deus ou com meu terapeuta e amigos, continuam quase sempre as mesmas. Melhorei em alguns aspectos, mas devo isso mais à idade do que à crença.  Conheci, pela vida, religiosos de vida exemplar e ateus sem caráter. Vivi com o inverso repetidas vezes. Não associo bom comportamento ao imaginário de cada um. Stalin era ateu. Franco e Salazar foram católicos. Pinochet adorava uma missa. Mao Tsé-tung abominava igrejas e templos. Todos eram ditadores e defenderam mortes e torturas. Pensar que a fé (ou a ausência dela) define caráter se choca com a experiência geral da história e o saber individual em cada biografia.  Reflita, se tiver apreço pela palavra de Jesus, na belíssima parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37). Não é a identidade religiosa que determina a caridade. Passaram pessoas de muita fé em Deus e ignoraram uma vítima de assalto. Passou um terceiro, alguém de que os judeus religiosos desconfiavam, um samaritano. Foi quem agiu. A caridade, condição para ser salvo no Juízo Final (cf Mateus 25), não pergunta sobre qual dízimo você pagou, ou qual tradução da Bíblia utilizou. A pergunta exclusiva do Mestre é sobre o que você fez para tornar o mundo melhor. Quando alguém me diz que segue o candomblé, ou que é ateu ou católico, isso revela pouco ou nada sobre a ética. A carteirinha de filiação de cada um é um documento burocrático. Todos são humanos. A cor da camiseta do time é irrelevante. Basta saber se, de fato, se sente humano e tem compaixão por outras pessoas. Só isso. Tenho esperança nas mentes que se escondem sob hábitos. Gosto do caráter muito mais do que uma foto no documento. 

Opinião por Leandro Karnal
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