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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Águias e lambaris

Os países têm interesses concretos e não possuem amigos. A ideia se repete.

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Atualização:

No livro Diplomacia, Henry Kissinger opta por começar a análise das relações internacionais a partir do século 17. Naquele momento, com o fim da guerra dos 30 anos, a paz da Vestfália (1648) estabeleceu políticas de zonas de influência e de equilíbrio em um mundo ocidental multipolar. O eixo dos capítulos seguintes gira em torno de uma política realista, objetiva, racional que coloca o interesse das nações acima de outras ideias. Razão de Estado torna-se superior a convicções pessoais ou religiosas. Exemplo da atitude? O cardeal Richelieu, em nome de uma objetividade pelos interesses franceses, contraria seu posto de príncipe da Igreja em uma nação de maioria católica e apoia os protestantes no conflito de 1618-1648. Trata-se de um exemplo claro de realismo político. Vence a Razão de Estado. Interessava mais ao ministro francês enfraquecer os inimigos Habsburgos do que garantir a defesa da sua fé. O momento seguinte em que surge a mesma posição é na forma da célebre piada de Churchill: “Se Hitler invadisse o inferno, eu faria pelo menos uma referência favorável ao diabo na Câmara dos Comuns”. O hábil Ulysses Guimarães teria dito algo similar: em campanha abraçamos tudo e todos. 

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Existe uma linha de realismo político que pode ser identificada em Maquiavel e que se espalha em exemplos como Otto von Bismarck, o chanceler prussiano e arquiteto da unidade alemã. Ela foi chamada de Realpolitik, reforçando sempre a máxima de que os países não têm amigos, porém interesses. Os dois principais focos dizem respeito a questões estratégicas e econômicas. Preservar integridade territorial, rechaçar riscos de conflitos prejudiciais, promover um comércio próspero e, assim, sempre lembrar que um ministro das relações exteriores não serve a potências estrangeiras, mas ao país que o sustenta e ampara.

A busca de uma linha ideológica para as relações diplomáticas e comerciais é, por natureza, algo problemático. Os exemplos são abundantes. Por anos, a URSS comprou açúcar caro em Cuba e forneceu petróleo barato para a ilha. O investimento deficitário era uma forma de dar mesada ao governo cubano e fortalecer uma ponta de lança no Caribe para fustigar a geopolítica dos EUA. Tinha lógica na Guerra Fria, no entanto colaborou para quebrar o regime soviético. O caminho foi seguido pelo governo chavista da Venezuela com óleo barato para Havana. O resultado foi similar. O governo brasileiro foi um pouco mais realista: em plena ditadura militar, o presidente Ernesto Geisel condecorou o presidente do socialismo romeno. Da mesma forma, o acordo nuclear com a Alemanha contrariava os interesses norte-americanos. Havia uma tradição de objetividade realista. Quase sempre, o governo brasileiro não se comporta nem de forma hostil, nem submissa a Washington. Antiamericanismo parece ser uma infantilidade meio insana, bem como a ideia de alinhamento automático com o país ao norte. Um dia, o presidente Carlos Menem na Argentina teve a ideia de participar do esforço de guerra contra o Iraque e declarou seu desejo de “relações carnais” com os Bush. O esforço foi feito. O apoio nunca veio de verdade e a Argentina quebrou de novo e sem suas sonhadas ilhas Malvinas. 

Os países têm interesses concretos e não possuem amigos. A ideia se repete. Eu considerei um erro estratégico da diplomacia brasileira um alinhamento maior com a Venezuela, Equador e Bolívia no período Lula-Dilma. O bloco ideológico não protegeu os interesses brasileiros, por exemplo, da Petrobrás no Equador ou do fornecimento de gás da Bolívia. Alinhamentos ideológicos são vazios como balões. Sobem um pouco e estouram mais adiante. Da mesma forma, preocupa-me o alinhamento ideológico com os EUA do governo Bolsonaro. A simpatia dos norte-americanos já é garantida pelo fato claro de que nosso comércio bilateral é muito lucrativo para eles. O déficit é brasileiro e a tipologia de quem está na embaixada brasileira ou no palácio do Itamaraty não é uma preocupação central, pois, sendo Lula ou Bolsonaro, continuamos perdendo dinheiro todo mês. Se o governo brasileiro berrar “yankees, go home” ou colocar bonés cafonas pró-EUA, o comércio continua sendo favorável ao enriquecimento do grande irmão do Norte. Dócil ou agitado, o lambari continua sendo engolido pela águia. 

Sim, um governo inteiramente alinhado com os EUA pode trazer benefícios, como, hipoteticamente, isenção de visto para os brasileiros. A simpatia tupiniquim garante contas e espelhos no escambo com os brancos. Sempre foi assim, desde aquela bela quarta-feira, 22 de abril de 1500. Um pouco mais tarde, os “tamoios” decidiram que a melhor maneira de combater inimigos internos era a aliança com franceses. Foi um equívoco. Tanto franceses como portugueses não respeitavam indígenas. Os dois países tinham interesses que não passavam pelo indigenismo.

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Tenho grande ligação com a história e com a cultura dos EUA. Escrevi livros sobre ambos. Todavia, sou um professor de história, e não chanceler do Brasil. Mais uma vez: países não têm amigos, apenas interesses. É preciso ter esperança e, talvez, uma mínima dignidade. 

Opinião por Leandro Karnal
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