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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Aconteceu no Villariño

Atualização:

Um recorte sem data que encontrei recentemente entre os guardados do jornalista, historiador musical e boêmio Lúcio Rangel me levou aos primeiros anos da década de 1960, nas asas de Paulo Mendes Campos, vale dizer, de sua coluna no Diário Carioca. Dividida em três partes e quase certamente publicada na segunda semana de maio de 1954, pois a primeira nota brindava os festejos, dali a dias, dos 40 anos de Lúcio, seu personagem principal, contudo, era o cineasta paulista Lima Barreto, que meses antes abafara em Cannes com o filme O Cangaceiro e sempre que ia ao Rio batia o ponto na Casa Villariño. Mercearia enxertada de uisqueria e ainda funcionando na avenida Calógeras, no centro da cidade, seu bar foi um dos mais bem frequentados refúgios vespertinos de jornalistas, artistas e intelectuais do pós-guerra. Numa de suas mesas Vinicius de Moraes e Tom Jobim acertaram a maior parceria da música popular brasileira de todos os tempos. Esse encontro histórico, por sinal patrocinado pelo habitué Lúcio Rangel, só aconteceria dois anos depois do que Paulo Mendes Campos relatou na terceira nota da coluna recortada, que, menos por comodismo ou preguiça do que por fervorosa admiração pelo autor, transcrevo ipsis litteris: “No Bar Villariño, na semana passada, encontrava-se na copiosa mesa de intelectuais o sr. Lima Barreto, diretor do filme O Cangaceiro. A certa altura, o sr. Lima Barreto proclamou que estava seguro de que o livro A Vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa, vendera mais de 65% em razão de um equívoco: essa porcentagem de seus compradores julgava tratar-se de uma biografia dele, o cineasta Lima Barreto, e não do autor de Policarpo Quaresma. Foi quando, então, o escritor Jaime Adour da Câmara, um fiel admirador do romancista carioca desde a sua juventude, levantou-se indignado e disse: - Você é um cretino. Daqui a três anos ninguém mais sabe quem você foi, ao passo que daqui a cem anos todo mundo ainda saberá quem foi o verdadeiro Lima Barreto. Cretino! Cretino! As palavras do autor de Europa, França e Bahia foram proferidas com uma sincera veemência, dedo em riste. O autor de O Cangaceiro limitou-se a sorrir um sorriso pálido de cega confiança em seu próprio gênio. O sr. Jaime Adour da Câmara se retirou do bar tomado do mais sincero dos furores”. Não conheci os furores de Adour da Câmara, mas convivi o bastante com a espaventosa figura de Lima Barreto e sua proverbial megalomania. Seus delírios de grandeza não tinham como prosperar na incipiente indústria de cinema da época. Sem financiador para uma ambiciosa adaptação de A Retirada da Laguna, de Visconde Taunay, contentava-se com reproduzir oralmente os momentos mais emocionantes da retirada tal como os dramatizara em seu roteiro, com uma teatralidade de dar inveja a José Celso Martinez Corrêa. Walter Lima Jr, Fernando Ferreira e eu tivemos o privilégio de uma récita privada, na sala da Cinemateca do MAM do Rio, e ficamos com a impressão de que aquela teria sido a sua magnum opus.  Quando comecei a trabalhar no Correio da Manhã, informaram-me da existência de uma lista negra de desafetos da casa, cujos integrantes não podiam ter seus nomes mencionados no jornal em hipótese alguma. Poucos nomes, dos quais só me recordo de dois: o deputado baiano Abelardo Jurema e Lima Barreto. “O que foi que ele fez pra estar nessa lista?”, consultei um veterano do jornal, referindo-me naturalmente ao cineasta, àquela altura o Lima Barreto de maior destaque em minha adolescente memória formada e deformada pelo cinema. Se eu já tivesse lido as Recordações do Escrivão Isaías Caminha não teria feito a pergunta. Do escritor só conhecia, na época, o canônico Policarpo Quaresma. Acresce que no início dos anos 1960, apesar do empenho de Francisco de Assis Barbosa para promovê-lo, o escritor carioca andava meio esquecido. Seu xará cinematográfico também amargava um certo ostracismo, fizera outro longa (o piegas A Primeira Missa), e de seus roteiros engavetados somente três seriam levados à tela, Quelé do Pajeú (por Anselmo Duarte), Pontal da Solidão (por Alberto Ruschell) e Inocência (por Walter Lima Jr).  Com o passar do tempo, cumpriu-se a profecia ou praga de Adour da Câmara. O Lima Barreto que ficou - e deverá ficar - é o da literatura, aquele cujo livro de estreia, ambientado na redação do Correio da Manhã do início do século passado e descendo a lenha em seu fundador, Edmundo Bittencourt, comprou o ódio eterno dos Bittencourt. O do cinema morreu abandonado num asilo de Campinas, em 1982. Ao reler esta semana a reedição ampliada de O Cinema de Meus Olhos, compilação das crônicas cinematográficas de Vinicius de Moraes lançada pela Cia das Letras, procurei alguma menção a Lima Barreto que tivesse ficado de fora da primeira edição, e de novo nada achei. Pelo visto, o poeta não se tocou com a repercussão internacional de O Cangaceiro e o prêmio de “melhor filme de aventuras” que conquistou em Cannes. É inegável sua contribuição à “descoberta” do Nordeste pelo cinema e à criação de um filão, mas, como bem disse Glauber Rocha, o filme não transcende seu gênero.  Em agosto de 1979, Glauber pediu por carta ao então diretor-geral da Embrafilme, Celso Amorim, que ajudasse o cineasta a produzir um filme que lhe desse na telha. Mais: que hospedasse Lima Barreto num hotel da praia de Ipanema e o levasse a Brasília para que o presidente Figueiredo o condecorasse pelos serviços prestados ao cinema nacional. Em seguida o condecorado diretor retornaria ao Rio para filmar Triste Fim de Policarpo Quaresma, “com todos os meios e toda cobertura”.  Glauber acreditava que do encontro dos dois Lima Barreto o cinema brasileiro “renasceria”. Doce ilusão. Mas que merecia ter vingado. Mesmo que só para acabar com a confusão que alguns ainda fazem entre os dois.

Opinião por Sérgio Augusto
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