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Abujamra faz teatro político em Mossoró

Por Agencia Estado
Atualização:

Quem nasce neste município de 300 mil habitantes, a segunda maior cidade do Rio Grande do Norte, depois de Natal, está fadado a ouvir a mesma história, da infância à idade adulta, 100 mil vezes repetida - de como o povo valente da cidade resistiu ao bando de Lampião. O fato ocorreu há 75 anos, em 13 de junho de 1927, dia de Santo Antônio, e representou a primeira grande derrota de Lampião, que aqui perdeu seis homens, entre eles o líder Jararaca - um dos túmulos mais visitados do cemitério local. Pois na noite de quinta-feira, mais de 2.000 pessoas tomaram as ruas e calçadas nos arredores da Igreja de São Vicente para ouvir e ver mais uma vez essa história representada no espetáculo Chuva de Bala no País de Mossoró, dirigido por Antonio Abujamra, a céu aberto, com 70 atores da cidade. Mais uma vez, Abu comprovou seu talento para dirigir grandes conjuntos - algo que já havia demonstrado com espetáculos como O Casamento, com 37 atores, baseado em romance de Nelson Rodrigues e sua montagem de O Auto da Compadecida. Em Mossoró, criou um espetáculo de grande beleza e força poética misturando desde máscaras no estilo da Commedia dell´Arte até o coro grego, utilizando com muita sabedoria não só recursos tecnológicos de última geração como o talento, inegável, dos atores locais. Três grandes tablados foram armados na entrada principal da igreja, em planos diferentes. Num dos palcos laterais, o mais alto, Abu era um narrador onisciente, uma figura que remetia a um imperador romano, uma espécie de Nero, incendiário, porém lúcido, como se revelaria ao longo do espetáculo. No tablado central, a cidade de Mossoró, onde movimentam-se prefeito, padre e povo e na qual a batalha seria travada. Na outra lateral, Lampião e seu bando tramam a entrada na cidade. De um lado e outro de cada palco lateral, dois grandes telões reproduzem ora imagens históricas de Lampião e seu bando, ora closes dos atores em palco ou detalhes de cenas, captadas in loco por Joriana Pontes e João Neto. As mesmas imagens são reproduzidas ainda na fachada da igreja, com um telão de fundo, num belíssimo efeito. O espetáculo começa à luz de velas, com os atores saindo da igreja como numa procissão. Em seguida, os personagens centrais são apresentados por duas ótimas coriféias, Toni Silva e Lenilda Souza. Começa então o primeiro desafio: de um lado o prefeito Rodolfo Fernandes (Marcos Leonardo) e o Padre Motta (Nonato Santos) liderando um coro de moradores de Mossoró e do outro Lampião (Cícero Dias) e seu bando. Humor não falta. Quando o prefeito diz que "Lampião verá que Mossoró tem macho para defender a cidade", a coriféia interfere e diz para o público: "Naquele tempo tinha." Num dado momento, o narrador Abu diz que as mulheres foram embora da cidade. E as que ficaram "pareciam personagens de tragédias gregas" e então o coro de mulheres, com movimentos em câmera lenta, realiza um belíssimo lamento. Ótimo exemplo da forma harmoniosa de como o tradicional e o moderno misturam-se nesse espetáculo - o tempo todo - é a entrada do coronel Antônio Gurgel (Augusto Pinto) montado numa motocicleta, enfeitada como cavalo, vestindo terno e usando uma máscara teatral. Desafio - Também ganha grande força dramática o efeito usado no desafio entre prefeito e Lampião. Eles se desafiam de forma indireta, cada um falando para seus homens no seu canto, mas as câmeras captam seus rostos (maquiagem branca no prefeito e vermelha em Lampião) e os reproduzem num imenso close nos telões, como se dialogassem. Na batalha, Abujamra utiliza efeitos de raio laser, que riscam o ar fazendo lembrar aquelas balas modernas que deixam rastros de luz, além de muita fumaça e impressionantes efeitos sonoros. Mais ainda, dois canhões de ar comprimido, estrategicamente colocados nas laterais do palco soltam milhares de pedacinhos de papéis acetinados, que iluminados produzem imagens deslumbrantes. Tudo isso em meio a uma coreografia de batalha, cujos detalhes são captados nos telões. Uma batalha terrivelmente bela. E depois dessa cena feérica, Abu comete a ousadia do silêncio. Mostra de forma teatral, numa cena trágica, silenciosa e lenta, a morte de Jararaca. No fim, tudo termina em quadrilha e queima de fogos de artifícios. Mas, antes de disso, falando textos de autores que iam de Spinoza a Clarice Lispector, incitando as pessoas a não terem mais "medo da mudança do que da desgraça, porque isso não evita a desgraça", Abu fez teatro político, no sentido mais genuíno dessa palavra, teatro da polis, com a polis e para a polis. Uma polis talentosa.

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