A voz real do Prêmio Nobel Gao Xingjian

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Por Agencia Estado
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Chinês naturalizado francês, o escritor, dramaturgo e pintor Gao Xingjian, autor de A Montanha da Alma (a ser publicado no Brasil em novembro, pela editora Objetiva), vive neste ano todas as glórias de ser o Prêmio Nobel de Literatura. O Festival de Teatro de Avignon, o mais tradicional evento do gênero na França, preparou uma grande festa para ele. Desde 30 de junho até 4 de novembro, o quase milenar Palácio dos Papas, no coração da cidade medieval, exibe uma grande retrospectiva de seus quadros. Duas peças suas estão sendo exibidas neste mês, bem como o discurso que o escritor proferiu ao receber o Nobel, A Razão de Ser da Literatura. Para completar, extratos do romance O Livro de um Homem Só também estão sendo lidos durante o festival. Hoje à tarde em Avignon - manhã no Brasil -, Gao concedeu, por telefone, uma entrevista à Agência Estado. Leia abaixo os principais trechos. Agência Estado - Depois do prêmio, o sr. teve tempo para escrever algo? Gao Xingjian - Não. Estou num turbilhão. Há muitas conferências, entrevistas, viagens. Avignon o está homenageando com uma mostra de quadros e com a montagem de suas peças e do discurso "A Razão de Ser da Literatura". Pergunto: qual a razão de ser do teatro e da pintura? Acho que são razões parecidas. O teatro e a pintura são formas de expressão artísticas, uma necessidade humana. Mas a forma de se exprimir é bastante diferente. A pintura é a linguagem do olhar, que ultrapassa as palavras, nela nos exprimimos pela imagem. O teatro é também diferente, porque o teatro precisa absolutamente da existência de um público, caso contrário, não tem sentido, o público é a razão de ser dessa forma de comunicação. Isso é diferente no trabalho do escritor e do pintor. O texto teatral é concebido pelo autor para ser exibido. Sua formação é principalmente teatral. Por que decidiu escrever romances? O que um romance pode dizer que uma peça não pode? O romance é, talvez, um monólogo, uma linguagem mais interior. Quando se escreve um romance, esse é um trabalho solitário. O teatro, não, ele se alimenta da mise-en-scène, da comunicação e do choque com o público. Assim, pode-se dizer que a perseguição política "favoreceu" a decisão de escrever "A Montanha da Alma"? Sim, foi um trabalho solitário, que durou sete anos. Comecei a escrevê-lo sem imaginar que pudesse publicá-lo, era para mim mesmo. Há dez anos, quando ele foi editado, saiu com 2 mil exemplares, nem todos vendidos. Jamais pude imaginar o que ocorreria daí em diante. Esse livro será lançado no Brasil em novembro. Os brasileiros não conhecem praticamente nada da literatura chinesa. A que é preciso estar atento para bem compreender a sua obra? Não creio que haja algo de específico para ler esse romance. Penso no leitor da Espanha, onde o livro foi editado em espanhol e catalão, que são línguas latinas, e não vejo dificuldades. Acho que para um leitor do português não haverá dificuldades. O Brasil, como a China, é um grande país e tem uma natureza exuberante. E essa grande natureza também fala no romance, o que aproxima os dois leitores. "A Montanha da Alma" tem um protagonista que ora é a expresso na primeira pessoa (eu), ora na terceira (ele), ora na segunda (tu). O que significam as mudanças? Essas são diferentes vozes da consciência humana. Para expressá-las, é preciso recorrer à língua. Quando se começa a exprimir essa consciência, pergunta-se: quem fala? Sem o sujeito, não há consciência humana. E ele aparece nos diferentes prenomes. O sr. já leu algum escritor brasileiro? Li Jorge Amado, um grande escritor, mas já faz uns 40 anos. Ele é muito bem traduzido em chinês. Acho que li Terras do Sem-Fim. Não tenho certeza, porque eu era ainda estudante, faz muito tempo. A tradução era muito sonora. As traduções para o chinês costumam ser boas? Sim, há muitos bons tradutores. O sr. também fez traduções. Mas não sou um tradutor. Traduzi por prazer, para pesquisar e entender autores como Ionesco, uma linguagem muito particular, que não havia na China. Queria ver como a língua chinesa podia assimilar uma obra que usava uma linguagem tão distante. Seus livros saem primeiro em francês, mas são escritos em chinês. Há perdas nessa tradução? Quando escrevo, eu não penso no leitor. Mas, de qualquer modo, há pelo menos um leitor: eu mesmo. E este é um leitor bastante exigente: se eu fico contente com a tradução, acho que vai ocorrer o mesmo com os outros. Não acredito que haja um diferença muito grande entre as duas versões. Porque o sentimento humano ultrapassa a questão das línguas, não há uma fronteira muito clara. Se a situação política chinesa mudar, o sr. gostaria de voltar a viver lá? Não imagino essa possibilidade. Para mim, a página foi virada, minha vida na China é hoje parte do passado. Vivo em outra cidade, outro país, estou escrevendo também em francês. Não planejo muitas viagens na vida, a China é um tanto longe. O sr. escolheu a França por que razão? Para o sr., há uma liberdade para o indivíduo na França que não se encontra em outros países, como Inglaterra e EUA? Acho que esse é um dado histórico. Paris tem um clima internacional, há artistas de todos os países se encontrando, um ambiente muito favorável à criação artística, às trocas e confluências culturais. Adoro a cidade e a França me acolheu muito bem; aqui em Avignon estão exibindo meus quadros, montando minhas pessoas. É muito agradável trabalhar assim. Um antropólogo brasileiro, também escritor, dizia que o adulto gosta dos elogios tanto quanto as crianças gostam dos doces. Isso é verdade para o sr.? Não necessariamente, porque não se pode trabalhar em busca do elogio. O trabalho de um artista é um trabalho constante, às vezes é até melhor trabalhar no anonimato. Um dia, num momento, ele pode ou não ser reconhecido. O sr. pode, depois do prêmio, sugerir nomes para a academia sueca. Quem, na sua opinião, merece o Nobel de Literatura? O trabalho de um escritor é de um longo tempo. Um dos membros da academia disse para mim: nós acompanhamos sua produção por dez anos. Não sabia que ia receber o prêmio, mas ouvia que era indicado por alguns amigos, professores, teóricos, etc. Todos os anos há uma centena de nomes propostos. Para o sr., a arte é o território do indivíduo? Sim. Os políticos é que falam em nome do povo. O artista não pode falar a não ser em seu nome. Essa é a mais real das vozes.

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