A voz dos anônimos de Saramago chega ao palco

A diretora Christiane Jatahay, experiente em adaptações de obras literárias para o teatro, estréia em SP Memorial do Convento, o romance de José Saramago em que a história, misturada com ficção, é vista de baixo

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Por Agencia Estado
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A idéia é mais do que ousada. Levar ao palco Memorial do Convento, romance do português José Saramago, a história da construção do monumental convento de Mafra e, paralelamente, da luta do Padre Bartolomeu para tornar real o sonho da construção de uma máquina de voar. Quem leu o livro, fascinante não só pela trama, misto de ficção e reconstituição histórica, mas também pela linguagem - um fluxo no qual apenas vírgulas separam frases em um diálogo - pode imaginar a dimensão da empreitada. Depois de alguns ensaios abertos ao público, Memorial do Convento estréia nesta sexta-feira, para convidados, no galpão do Sesc Pompéia para convidados. E quem é essa equipe disposta a mergulhar em tal desafio? No elenco há atores já conhecidos dos paulistanos, como Letícia Sabatella, Caio Junqueira, Fernando Alves Pinto, um trio que, além de teatro, atua em televisão e cinema. E ainda Malu Galli e Marcelo Valle, ambos vindos da Cia. dos Atores (Melodrama, Meu Destino É Pecar). E ainda Augusto Madeira, ator do bom teatro carioca, que pode ser visto no filme Madame Satã. A diretora, Christiane Jatahay, é uma carioca com comprovada sensibilidade para adaptação de obras literárias. No Parque Lage, no Rio, ao ar livre, ela realizou o que chamou de trilogia da iniciação, encenando Alice no País das Maravilhas, Peter Pan e Pinóquio. Destinados a espectadores de qualquer idade, foram vistos por mais de 100 mil pessoas e ganharam 12 prêmios. "Ali pesquisei o tema da passagem da infância para a idade adulta sob três perspectivas diferentes - da sexualidade, da filosofia e da relação com a sociedade", lembra Christiane. Também atriz, Christiane já interpretou vários personagens de peças do dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra - responsável pela dramaturgia do espetáculo -, autor de Ay Carmela (adaptada para o cinema por Carlos Saura) e Perdida... Uma Comédia Quântica, peça atualmente em temporada no Teatro João Caetano, em São Paulo. Há 12 anos Christiane vem realizando parcerias com Sinisterra. A última delas foi num grande projeto teatral em Madri, em 1999, do qual participava também o cenógrafo português Castanheira , onde surgiu a idéia da adaptação de Memorial do Convento, e da nova parceria. "Desde o início tínhamos a certeza de que não seria possível dar conta da dimensão do romance. Além da história, com uma enormidade de informações, há aquela linguagem, de profusão quase barroca, que conduz o leitor como se ele estivesse sendo arrastado por rio", observa Christiane. Sendo assim, Sinisterra e Christiane optaram por um recorte. Idéia traduzida logo nas primeiras cenas da montagem, nas quais os atores narram trechos do romance como se lessem, de livro na mão. Entre elas, contam como surgiu a idéia da construção do convento, promessa feita à Igreja caso a rainha engravidasse. Mas ao menor movimento, páginas do volume soltam-se e espalham-se pelo chão, para angústia dos intérpretes que tentam resgatá-las. Não tem jeito. A cena sinaliza que uma parte dessa história vai se perder no palco. Mas o que fica, então? "Antes de mais nada, fizemos cortes, mas não há uma vírgula que não seja de Saramago", garante a diretora. "Desde o início, para todos nós, o mais importante era saber o que Saramago quis realmente dizer ao contar essa história. E nossa primeira resposta a essa pergunta, sempre repetida, foi a de que com esse romance, ele dá voz aos anônimos, dá autoria a quem de fato faz a história e não ao poder que a determina", comenta Christiane. Daí, na montagem, os personagens serem todos gente pobre, aquela parcela da população que sobrevive a custo, agora chamados de excluídos. Eles estão no palco. E é como se comentassem, entre eles, o que está acontecendo em Portugal. Aos poucos, vão assumindo os personagens centrais - o rei (Madeira), a rainha (Malu), o casal Blimuna (Letícia) e Sete-Sóis (Junqueira), que ajudam o Padre a construir sua ´passarola´, e ainda o músico Scarlatti (Pinto), responsável pela execução ao vivo da trilha sonora criada por Tato Taborda. A montagem se apóia sobre dois eixos. "O romance é construído na polarização entre a construção do convento e a construção da passarola, entre sonho e realidade, uma realidade construída à força a partir da loucura de um rei e outra a partir do sonho do Padre Bartolomeu, em fraterna parceria com Blimunda e Sete-Sóis." Em sua concepção, Christiane ampliou os sentidos dessa polarização - o desejo de voar, na montagem, significa a possibilidade de transformação pessoal, de aquisição de um novo olhar sobre o mundo, de autonomia de pensamento. A construção do convento está presente o tempo todo, na narrativa, nos sons de sirene e no vozerio distante, mas que ninguém espere ver atores carregando enormes pedras em cena. "O público não encontrará a linguagem épica em nossa montagem. É um espetáculo sintético, concentrado. E, claro, somos artistas. Ali há um ponto de vista, uma perspectiva, nosso olhar sobre o romance." Cenário e trilha sonora foram criados para dar ao espectador a sensação de estar dentro de uma imensa obra. "Trabalhamos sobre a idéia da caverna de Platão. As pessoas estão ali, oprimidas, dentro daquela construção, e só conseguem enxergar aquele mundo. Até a chegada do Padre Bartolomeu. Ele é alguém que saiu dali e volta para dizer que existem outras possibilidades. A partir daí os personagens de dividem entre os que querem a transformação, Blimunda e Sete-Sóis e, no outro extremo, o rei e a rainha." Memorial do Convento - Adaptação de Geraldo Carneiro para texto de José Saramago. Dramaturgia de José Sanchis Sinisterra. Direção Christiane Jatahy. Duração: 80 minutos. Sexta e sábado, às 21 horas; domingo, às 19 horas. R$ 25,00. Sesc Pompéia - Galpão. Rua Clélia, 93, São Paulo, tel. 3871-7700. Até 23/2.

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