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Do repertório coral à criação atual, o maestro Celso Antunes recusa rótulos

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Por João Luiz Sampaio
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O célebre solo de fagote com que Igor Stravinski abre a Sagração da Primavera se impõe sobre o som da orquestra e nos leva de volta à origem da peça que é ensaiada na tarde de quarta-feira na Sala São Paulo: Sacre du Sacre, uma homenagem do brasileiro Marlos Nobre ao centenário da obra com que o autor russo, em 1913, sacudiu o establishment musical francês. Com a partitura em mãos, Nobre acompanha da plateia vazia a execução. Silêncio. E o maestro Celso Antunes se volta para ele. "Marlos, as pausas estão ok? Era isso?" O compositor acena positivamente, e caminha até o palco. Os dois observam a partitura, conversam. A música volta a soar. O autor levanta o polegar em sinal afirmativo.A estreia da peça de Nobre é apenas um dos pontos nevrálgicos do repertório que Antunes, novo regente associado da Osesp, interpretou com o grupo desde o início do ano, sempre ligado à música brasileira. Em fevereiro, gravou um disco todo dedicado à obra de Almeida Prado, com as suítes feitas a partir da Sinfonia dos Orixás e de Estudos sobre Paris e a Fantasia Concertante para Violino e Orquestra; no dia 3, à frente do coro, estreou O Canto de Phoebus, de Edson Zampronha; e, hoje, comandando a Orquestra de Câmara da Osesp, faz a primeira audição mundial do Concerto para Viola e Cordas, de Vagner Cunha."É muito trabalho, mas feito com um prazer enorme", diz Antunes, entre o ensaio com a Osesp e seu conjunto de câmara, na tarde de quarta. "A peça do Marlos tem enorme complexidade, mas é de uma força impressionante." A conversa segue para o tema da modernidade. No programa que apresentou desde quinta, Antunes regeu, além de Nobre, peças de Camargo Guarnieri, Shostakovich e Borodin (leia ao lado). "Eu vejo um espelho nessas obras. Temos um autor moderno brasileiro e um mais antigo, que é o Guarnieri; e, de outro lado, Shostakovich, paradigma da modernidade russa, e um outro que está mais ligado ao passado, Borodin. Há muitos paralelos que podem surgir daí."A música nova tem sido um eixo do trabalho de Antunes - no ano passado, por exemplo, trabalhou com o New Ensemble, em Amsterdã, em um projeto que levantou obras de 90 compositores brasileiros contemporâneos. Mas ele se sente à vontade tanto ao trilhar os caminhos da música nova quanto ao reinterpretar os clássicos de Monteverdi ou Bach. Mais do que isso - não vê por que precisa optar entre os dois universos. E a incapacidade, reconhecida e celebrada, de se decidir tornou-se uma das principais marcas de sua trajetória.Nascido em São Paulo, o maestro começou na música pelo violão. "Iniciação musical de menina era o piano, de menino, o violão. Mas eu não via nada demais naquilo. Estudar música? Queria mesmo era jogar bola." A mudança ocorreu aos 14 anos, em São Caetano do Sul, quando cantou em um coro pela primeira vez, regido por Lutero Rodrigues. "Aquilo mexeu comigo. Eu me lembro até hoje: uma missa de Mozart, a primeira que ele escreveu. E de repente eu descobria que sabia cantar. E logo comecei a participar de tudo quanto era coro."O violão, há muito abandonado, deu lugar ao violoncelo. E ao canto. E à regência. Antunes foi estudar na USP, largou o curso, foi ser aluno e assistente de Jamil Maluf na Sinfônica Municipal Jovem (hoje Orquestra Experimental de Repertório). "Mas eu nunca perdi a consciência das minhas limitações, sabia que havia muito a corrigir ainda. E resolvi que precisava lidar com isso lá fora, o que fiz com uma bolsa de estudos na Alemanha. Era para ficar um ano, acabei ficando três."Na Europa, Antunes - sempre ligado ao canto - acabou se transformando em autoridade na música coral. À frente de grupos como o Coro da Rádio da Holanda, trabalhou - e gravou - com maestros como Simon Rattle, Zubin Mehta, ou Mariss Janssons. Foi indicado para o Grammy em 2010 por um CD com obras de Joaquim Turina e, no ano passado, seu disco com o conjunto holandês lhe rendeu a posição de finalista do prêmio da revista Grammophone. No Brasil, ele comandou a Camerata Fukuda."Você não tem ideia de quantas vezes ouvi de agentes: Celso, você precisa se decidir - você quer ser regente de coro ou regente sinfônico? Mas até hoje eu consegui escapar, fico escorregando como sabão. E uma coisa ajuda na outra. Monteverdi é uma lição na hora de tocar Borodin, e vice-versa. O que aprendo regendo um coro uso com uma orquestra. São dois mundos que as pessoas dividem, mas são uma coisa só."A diversidade ele faz questão de manter também no que diz respeito ao repertório. Só evita obras para as quais não se julga pronto. E é particularmente honesto sobre isso. "Há coisas em que não coloco a mão. As sinfonias de Bruckner, por exemplo, eu não as entendo, não posso regê-las. O último Wagner, Parsifal? Nem pensar! Mahler? Eu me recusei muitas vezes até me sentir pronto para começar, no ano passado, aqui com a Osesp, com a Canção da Terra. A vida do músico é um constante aprendizado, não vejo nada de errado nisso."Regente associado da Osesp, ele se define mais como um "principal regente convidado", disposto a "colaborar com o desenvolvimento de um grupo que tem um futuro brilhante". "Quero incluir elementos que permitam à orquestra fervilhar", diz. Monteverdi, Haydn, Mozart, Bach. "São autores que podem ajudar a orquestra a construir sua marca. Faremos isso."

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