A volta dos que se calaram

Tata Amaral fala de Hoje, filme sobre a ditadura militar vista pelos que não verbalizaram o horror vivenciado

PUBLICIDADE

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Tata Amaral é a primeira a reconhecer e sorrir - "Meu set é muito chique." E é verdade. O fotógrafo de cena acaba de ser selecionado para uma mostra paralela na Bienal de Veneza. Não representa pouca coisa, mas Ding Musa não é exceção. O fotógrafo Jacob Solitrenick, a diretora de arte Vera Hamburger, o elenco (Denise Fraga e o uruguaio César Troncoso, de O Banheiro do Papa), são muitos os talentos, a par da própria diretora, que prometem fazer de Hoje um acontecimento. Um filme que se chama Hoje? Tata terminou ontem as filmagens em São Paulo e hoje participa de um pitching em Paulínia. Com unhas e dentes, garra e paixão, ela defende seu filme, que ainda necessita de recursos para ser finalizado. Por três semanas e meia, ela filmou em São Paulo, num decor praticamente único, um apartamento na Av. São Luiz. Agora, em Paulínia, ela vende a ideia de Hoje para conseguir finalizá-lo em estúdio. As cenas em Paulínia são fundamentais.Na sexta (passada), quando o repórter do Estado visitou o set na Av. São Luiz, a cena parecia simples. Denise e Troncoso dialogam e, mais do que isso, brigam na cozinha do apartamento. Parece briga de casal, mas a diretora explica que a cena é essencial em Hoje. Acrescenta um dado e faz um pedido - o repórter não deve explicitar a natureza da cena sob pena de rebelar o twist sobre o qual repousa o filme inteiro. Estranha matéria. Sobre um filme e uma cena que deve permanecer nebulosa.Mas vamos ao que interessa. Tata Amaral dispensa apresentações. É das mais talentosas diretoras de sua geração. Filmes como Um Céu de Estrelas e Através da Janela estabeleceram sua reputação. O relativo fracasso de Antonia foi um acidente de percurso e nem se pode falar de fracasso. O filme não foi bem de bilheteria, mas quem disse que esse é o único recurso de avaliação de uma produção? Antonia participou de festivais no País e exterior, virou série de TV.Tata agora aborda os anos de chumbo. Ela já o fez numa série de TV, na Cultura. Hoje conta a história de Vera (Denise Fraga), que ganha indenização pelo desaparecimento do companheiro, durante os anos de chumbo da ditadura militar. Ela compra o apartamento da Av. São Luiz. No dia em que está se mudando, o marido reaparece. Como lidar com essa nova situação? Não é só o ambiente, o apartamento, que é concentracionário. Os personagens também são reduzidos. Dois carregadores, que fazem a mudança, a síndica do prédio. Denise é Vera, mas Vera também é Ana Maria, um nome de guerra (durante a guerrilha). O marido é Luiz, mas também é Carlos. O confronto é intenso. A diretora explica:"Hoje é um filme que contesta os limites do realismo no cinema. Até aqui, tenho filmado sempre em locações, e Hoje não foge à regra. Mas preciso dessas cenas em estúdio, que ainda pretendo filmar em Paulínia. Elas vão dar outra textura ao relator." O cinema brasileiro tem feito muitos filmes sobre os anos de chumbo, mas os críticos e espectadores vão concordar que ainda falta o grande filme sobre o período - algo como o argentino O Segredo dos Seus Olhos, vencedor do Oscar. Tata explica o diferencial de Hoje - "Há filmes sobre a guerrilha e a repressão. Mas poucos, ou nenhum, aborda o tema que me proponho a enfocar aqui. Hoje é sobre os que calaram. José Genoino disse uma coisa interessante - na prisão, muitos companheiros, ele inclusive, tiveram tempo de verbalizar o horror, e isso os preparou para retomar a vida. Os que silenciaram, como foi o seu retorno? É o drama, a tragédia de Vera, agravada pela volta de Luiz. O que significa essa volta? Um desejo da mulher? Uma punição?"Tata não trabalha sobre argumento original. O roteiro lhe foi sugerido por um texto de Fernando Bonassi. Ela conta que a história a atingiu como um raio. "Numa cena, eu precisava de uma carta que o marido teria escrito para Vera. Saquei de uma carta que Sergei, o pai de Caru, escreveu para mim." Sergei foi o primeiro marido de Tata, morto muito jovem. Caru, filha da diretora - e agora integrante da equipe de produção -, tinha 3 meses quando o pai morreu. O detalhe pode parecer insignificante, mas sintetiza o grau de envolvimento de Tata com o projeto. A história virou pessoal e, por isso, ela está ansiosa com a apresentação de hoje em Paulínia. Ela quer terminar logo o filme. "É uma história necessária, visceral." Tata manteve a ação em 1998. Se a transportasse para a atualidade, outras questões teriam surgido. A própria presidente Dilma Rousseff acha que essa questão da repressão do regime militar não está resolvida. "Não se trata de revanchismo", diz Tata. "A tortura é um crime de lesa humanidade. Se você encontrar um nazista, vai silenciar? Não, vai denunciar porque ele cometeu um crime hediondo, que extrapola uma pessoa e atinge a consciência da humanidade inteira. Hoje trata dessas questões. Pode parecer muito amplo, e muito ambicioso, mas é um tema que ainda precisa ser tratado."O clima no set, nesse finzinho de rodagem, é peculiar. "Terminar um filme é sempre difícil", diz a diretora. "A gente forma uma família, convive junto, é sempre uma ruptura." Hoje não nasce com a promessa de vir a ser um blockbuster, mas um filme de autora. A expectativa é de que seja tão bom, ou até melhor, que os melhores filmes de Tata Amaral.Denise Fraga estah encantada com seu encontro com Tata Amaral.QUEM ÉTATA AMARALCINEASTAPaulistana nascida em 19 de setembro de 1960, Tata Amaral é considerada uma das mais importantes cineastas brasileiras a partir da década de 1990. Entre suas obras estão Um Céu de Estrelas (1997), várias vezes premiada no Brasil e no ex-terior, Através da Janela (2000) e Antônia (2006), longa que virou série da Globo.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.