A volta da pantera

Musa da internet, Maria Alice Vergueiro retorna ao teatro com As Três Velhas, peça do chileno Alejandro Jodorowsky

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Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

À frente.

Além de atuar, Maria Alice dirige a montagem, que conta também com Luciano Chirolli e Pascoal da Conceição

 

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"Hoje estou mais tranquila. Quando era mais nova não sabia muito bem quem eu era, não tinha muita consistência", relata Maria Alice Vergueiro, de 75 anos completos, quase meio século de carreira no teatro. Naquela época, um tanto amalucada, ela lembra que chegou mesmo a cometer alguns desatinos, deslizes, dessas loucuras de juventude nas quais hoje custa a acreditar. "Fiz muitas bobagens. Cheguei até a me casar, imagine, você", rememora, com ar de verdadeiro espanto, a atriz símbolo do teatro underground paulistano.

Das tantas coisas que viu mudar e que mudou em si própria nas últimas décadas, Maria Alice só assente ter mantido o que chama de dignidade. "Porque até na lama você tem que ser digno", ela ensina. "Agora, só estou podendo fazer papel, assim, de mais velha. Não adianta tingir o cabelo, colocar um olho pintado. Porque eu não estaria perto daquilo que realmente eu sou. E o que é que eu sou?"

"Uma puta velha", respondem em uníssono Luciano Chirolli e Pascoal da Conceição, atores que dividem a cena com a intérprete em

As Três Velhas

. Escrita pelo chileno Alejandro Jodorowsky, a peça entra em cartaz dia 20, no CCBB. Com encenação assinada pela própria Maria Alice, a produção é uma de suas raras direções para teatro e um projeto no qual a antiga musa do Teatro do Ornitorrinco está empenhada há mais de dois anos.

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Em 2008, uma primeira versão do espetáculo chegou a ser apresentada em São José do Rio Preto, durante o Festival Internacional de Teatro. Foi logo após ser "redescoberta" pelo sucesso do vídeo

Tapa na Pantera

que Maria Alice encontrou o texto de Jodorowsky. Autor mais conhecido por seu trabalho como cineasta, o chileno dirigiu filmes de impacto, caso de

El Topo e Santa Sangre

- drama que é uma viagem surrealista de horror por uma instituição psiquiátrica e se tornou um cult.

Maria Alice ouvira falar dele desde os anos 70. Lembra que, no Teatro Oficina, Zé Celso Martinez Corrêa já evocava seu nome como ícone da contracultura e, à época, circulavam notícias sobre a paixão do beatle John Lennon por seu trabalho. Conta, porém, que só descobriu sua obra recentemente e de maneira pouco ortodoxa: durante uma sessão de tarô.

É possível assistir pela internet, no

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site do CCBB

, ao momento em que Jodorowsky tira o tarô para atriz. À medida que saca as cartas, comenta ver em sua vida uma figura masculina muito forte. O arquétipo de um imperador, de um homem justiceiro. "Quem sabe esse homem não sou eu", sugere em determinado momento. Foi um vaticínio, ela acredita.

A arte da conversa.

"Deviam pôr um taquígrafo atrás dele e vender suas anotações em uma loja de frases", disse Nelson Rodrigues, certa vez, sobre o talento de Otto Lara Resende na arte da conversa. Adaptações feitas, a afirmação rodriguiana também não soaria exagerada se aplicada a Maria Alice e suas máximas, sentenças definitivas que ela despeja enquanto discorre sobre qualquer assunto. "Eu tenho uma reputação a zerar", decreta, com voz grave e um sorriso de júbilo que lhe escapa pelo canto da boca. "E olha que já digo isso há mais de 30 anos."

Formada em pedagogia, descendente de aristocratas, mãe de dois filhos, Maria Alice assumiu-se atriz tardiamente. Havia estreado profissionalmente em 1962, com

A Mandrágora

, mas só abraçou de fato a carreira nos anos 70, quando já estava separada do marido e se ligou ao Teatro Oficina. Em 1977, junta-se a dois de seus ex-alunos da Escola de Comunicações e Artes da USP - Luiz Roberto Galízia e Cacá Rosset - para fundar o Teatro do Ornitorrinco. Lançaram-se quase clandestinamente em um porão, encenando durante as madrugadas

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Os Mais Fortes

, uma adaptação do texto de August Strindberg. E, em suas versões de Brecht, Chico Buarque e Shakespeare, tratariam de reinventar o sentido do teatro engajado.

Dois em um. "Não adianta ser um revolucionário que não consegue aparecer", sentencia. Com um discurso pragmático, ela confirma as dificuldades de conseguir patrocínio para o que faz. Crê que são poucas as chances de que uma empresa queira associar seu nome a um teatro que resvala no grotesco, no pornográfico, no maldito. Mas rejeita, com a mesma ênfase, qualquer visão edulcorada do passado. "No meu tempo de faculdade, um espetáculo como esse iria ficar três dias em cartaz, em uma salinha escondida."

Em suas oscilações pelo kitsch, pouco há de realismo na peça de Jodorowsky. Ainda assim, não é difícil perceber os pontos da montagem em que as trajetórias das marquesas decadentes e de Maria Alice coexistem. A despeito dos esforços para manter as aparências de nobreza, as anciãs não têm mais o que comer. Só conseguem alcançar a redenção quando são descobertas por meio de um filme, divulgado no YouTube, e alçadas ao posto de garotas-propaganda de uma marca de refrigerantes. "Elas estavam vivendo em uma outra época e tinham que se atualizar", interpreta a diretora. 

 

 

 

 

 

 

 

A referência ao popular site de vídeos não constava do texto original. Foi incluída pela própria Maria Alice, mas o acréscimo serve apenas para reforçar a semelhança entre a fábula e a história da própria atriz - alçada à categoria de celebridade instantânea desde o vazamento na internet do curta Tapa na Pantera, em 2006. "Hoje, por exemplo, eu veria com outros olhos se uma fábrica de refrigerantes quisesse me patrocinar. Você tem que tornar produto o seu sonho. Não pode só sonhar", ela adverte. "O negócio é aprender a se terceirizar no status quo." Ao fim, parece que a pantera uniu os opostos, descobriu a fórmula para ser pop e avant-garde ao mesmo tempo.

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