A vida por um fio

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Por Sérgio Augusto
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Passei os últimos dias numa espécie de Faixa de Gaza literária, a degustar com avidez as simultâneas memórias de um judeu (o americano Paul Auster) e as reminiscências de um muçulmano (o indiano Salman Rushdie), que, por coincidência, são grandes amigos, têm a mesma idade (65 anos) e praticam uma memorialística heterodoxa, não narrada na primeira pessoa. Rushdie relata a história de sua vida por interposta persona: Joseph Anton, amálgama de Joseph Conrad e Anton Chekhov, pseudônimo a que foi obrigado a recorrer para ludibriar com maior eficácia os executores da fatwa (pena de morte) lançada pelo aiatolá Khomeini, por causa do livro Versos Satânicos. Auster fala de si de forma vocativa: não trata o sujeito de suas reminiscências por "ele", como faz Rushdie e ele próprio fez, há 30 anos, na segunda parte do autobiográfico O Inventor da Solidão, mas por "você", como se estivesse a conversar com o leitor. "Você está com 6 anos de idade" - é assim que o narrador se introduz. E até o fim a segunda pessoa do singular será mantida. Joseph Anton: Memórias (Companhia das Letras, tradução de Donaldson M. Garschagen e José Rubens Siqueira, 614 págs., R$ 54,50) e o diário invernal de Auster, Winter Journal (Henry Holt, 230 págs., US$ 9.69 na versão Kindle), a ser lançado pela Companhia das Letras daqui a oito meses, têm outro ponto em comum: seu tema maior é a arte ou a estratégia de sobrevivência - a tentativas de assassinato, desastres, doenças, decepções afetivas. Joseph Anton logrou safar-se da sanha assassina de fanáticos maometanos, e Auster, a um sem-número de ziquiziras e acidentes. Ao longo das memórias do primeiro morre um bocado de gente, vitimada por enfermidades (a maioria de câncer) e atentados terroristas (danos colaterais da caça ao "blasfemo" autor de Versos Satânicos). Joseph Anton, que perigou ser batizado de Vladimir Joyce, Marcel Beckett e Franz Sterne, "morreu com vida" quando a perseguição a Rushdie foi temporariamente relaxada. A cabeça do escritor, contudo, permanece a prêmio, recentemente reajustado para US$ 3.3 milhões. Auster admira-se, com razão, de haver chegado à sua idade, ao que chama de "inverno da vida", mas ao cabo de sua história, recapitulada pela perspectiva de seu corpo ("onde tudo começa e termina"), pergunta-se, angustiado, quantas manhãs ainda lhe restariam ao lado da mulher (a escritora Siri Hustvedt) e os dois filhos. Embora o título do diário tenha sido inspirado no Winterreise (Viagem de Inverno) de Schubert, Auster tentou imitar a estrutura de uma fuga musical, à base de fragmentos autobiográficos sem ordem cronológica, indo e vindo no tempo, pois no mundo da memória tudo é simultâneo. Fez um livro poético e tocante sobre as marcas que a vida imprime em nossos corpos e a senectude amplia, implacavelmente. É de outra espécie a fuga ou as fugas que Rushdie encadeia em suas memórias do subterrâneo, dos anos em que viveu perigosamente, com outro nome e às escondidas como um perigoso bandido, um réprobo inventado pela intolerância religiosa e a conveniência política, sempre a trocar de endereços e vigiado sem tréguas e full-time por agentes da polícia londrina, que, por motivos de segurança, lhe deram o codinome de "andorinha-do-mar". Confesso que temia sucumbir ao cansaço e ao tédio antes de chegar ao meio do cartapácio, mas já no prefácio hitchcockiano, comparando os corvos que atacaram a escola de Bodega Bay ao atentado às torres gêmeas do World Trade Center, me rendi totalmente ao aventuresco relato de Joseph Anton, um thriller político e existencial que é também uma crônica do mundo literário do eixo Londres-Nova York-Paris, farta em celebridades e episódios pitorescos. Se tivesse desembarcado de sua leitura, teria perdido um jantar de Rushdie com o ermitão Thomas Pynchon, a 259 páginas do desfecho. Nascido em Bombaim e formado em Cambridge, com uma tese sobre as origens históricas e a divinização de Maomé, Rushdie conheceu Manhattan e sua intelectualidade, da qual logo ficou íntimo, em 1981, após a publicação de Os Filhos da Meia-Noite, que muitos críticos ainda consideram seu melhor livro. Ciceroneado por Kurt Vonnegut Jr., por questão de minutos não testemunhou de corpo presente a morte, por enfarte, de Nelson Algren, em Sagaponack. Com o escândalo em torno de Versos Satânicos, acercou-se ainda mais dos escritores americanos, que foram os que se empenharam com maior vigor e pertinácia pela sua "absolvição", em nome de um princípio acima de toda e qualquer crença religiosa: a liberdade de expressão. Foi na manhã do Dia dos Namorados (14 de fevereiro) de 1989, cinco meses depois do lançamento de Versos Satânicos, que o aiatolá iraniano deflagrou o processo que viraria a vida de Rushdie pelo avesso e o transformaria num pop star, no escritor mais famoso (e procurado) do mundo. Dá gosto acompanhar o imediato, irrestrito e eficiente movimento de solidariedade e ajuda que seus pares lhe prestaram nos dois lados do Atlântico, oferecendo-lhe apoio moral, apoio logístico, abrigo - e festas, muitas festas, apinhadas de gente como Auster, Norman Mailer, Susan Sontag, Ian McEwan, Harold Pinter, Christopher Hitchens, Carlos Fuentes, Don DeLillo, Edward Said, Bob Dylan, Allen Ginsberg, Martin Amis, Vargas Llosa, Nadine Gordimer, etc. Joseph Anton não é só um livro sobre a sobrevivência, mas também sobre a força da amizade. Em contrapartida, John Le Carré, Tariq Ali, o russo Joseph Brodsky e John Berger saíram mal na foto. Aceitaram a fatwa com indecente naturalidade, como se Rushdie a tivesse provocado deliberadamente, por ser "um megalômano" (acusação de Germaine Greer) e buscar a fama a qualquer preço. Em suma, aiatolaram feio. E-mail: s.augusto@estadao.com.br

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