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A vida no banco de trás

Quando dei pela coisa, já fazia semanas, meses, que não dirigia um automóvel

Por Humberto Werneck
Atualização:

Não houve uma decisão solene – simplesmente aconteceu, em dia e hora dos quais já não consigo me lembrar. Até gostaria, pois costumo guardar registro exato de acontecimentos, ainda quando só a mim interessem. Seria bom poder afirmar que foi numa sexta-feira, a horas tais, estando eu em tal lugar. Um pouco como no dia, quase 40 anos atrás, em que parei de fumar, abandonando um dos três maços de que dava cabo todos os dias.

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Naquele caso, já assaz contado, a data ficou marcada, não exatamente pela renúncia ao vício, mas por ser feriado, aniversário de São Paulo, e por estar eu às voltas com uma gripe derrubadora. Mas também ali não houve premeditação, promessa, juras, dedos cruzados, e muito menos heroísmo ou bravura; quando vi, tinha passado um dia inteiro sem cigarro, algo possivelmente inédito na vida de quem acendera o primeiro deles duas décadas antes, aos 15 anos de idade, em circunstância que, vista de hoje, talvez devesse, pela bobice que encerra, me cobrir de vergonha retroativa. Permita-me relembrar aquela passagem lamentavelmente inesquecível, nem que seja como tentativa de expiar o ridículo da situação.

Levado por meu pai para assistir à inauguração de Brasília, deixei cair a jovem mandíbula ante tanta pompa, tanto fraque, tanta esquadrilha da fumaça, vendo passar em carro aberto o presidente Juscelino a distribuir acenos para nós, o populacho. Provavelmente me senti na obrigação de também eu fazer alguma coisa, qualquer coisa, para estar à altura do momento histórico – mesmo que essa coisa fosse me encostar no balcão de uma vendinha e, como quem anunciasse ao mundo a sua entrada na idade adulta, comprar o primeiro maço de cigarros, para a ele escravizar-me pelos 20 anos seguintes. A situação terá sido ainda mais risível, me ocorre agora, se a inspiração tabagística tiver vindo (desconfio que sim) do espetáculo daqueles aviões a esguichar fumo no céu da nova capital.

*

No caso que hoje me trouxe aqui, nenhuma lembrança me ficou do momento em que, pela última vez, tirei a chave do contato de meu Honda Fit 2005, o quinto veículo de uma, digamos, carreira automobilística iniciada 40 anos antes com um Fusca, ao qual se seguiram um Gol, um Monza (onde estava eu com a cabeça?) e um Corsa Sedan. Carreira das mais apagadas, como se vê, vivida por quem teve muito menos automóveis do que o Vinicius de Moraes, casamentos. Nove a cinco para o poeta.

Não houve, repito, a menor premeditação no gesto de desligar o Honda Fit (o melhor de meus carros, seja dito, embora comprado de terceira mão), para a partir de então descobrir os encantos do banco traseiro. Não me guiou nenhuma nobre consciência ecológica. Assim como no caso do cigarro – outra vez a fumaça, sempre ela –, a razão de estacionar em definitivo não terá sido mais que o cansaço, o fastio, a overdose. Um pouco como improvável marido ou mulher que, sem estar pensando em separação, apenas se esquecesse de voltar para casa.

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Na verdade, eu poderia ter atravessado a vida sem fazer escala em posto de gasolina. Se me tornei motorista, já na casa dos 30 anos, foi porque meu filho estava para nascer, e um pai, me parecia, tinha a obrigação de prover, além de carinho, mobilidade. Na casa onde me criei, carro era Kombi – em que outro veículo acomodar os dez filhos do dr. Hugo e da dona Wanda? Não exatamente isso, na avaliação do Flávio, o irmão querido que perdi num acidente de estrada: “Você não tem carro”, dizia o atrevido ao nosso pai, “o que você tem é condução”. 

Dirigir era coisa que se aprendia com o dr. Hugo, e ser autorizado a sair com a Kombi não dependia apenas de habilitação, mas também de um bom desempenho escolar – exigência que eu jamais daria conta de atender. Orgulhoso, nem sequer pedi ao pai que me ensinasse a dirigir. Alma generosa, ele mais tarde me ofereceu um curso numa autoescola, e lá fui eu, defrontado agora não com embates domésticos, mas com minhas limitações, entre elas o medo de dirigir. Fui até o fim, mas não tive peito de me arriscar a mais uma reprovação, mau aluno que era também nesse departamento. O máximo que aprendi foi que sob meus pés havia um acelerador, um freio e uma embreagem, e algum tempo depois já não saberia dizer quem era quem nesse trio. 

Voltei a sabê-lo quando, em São Paulo, na iminência de ser pai, tornei-me repetente também em autoescola. No dia do exame, éramos uma dúzia de aspirantes numa van rumo ao Parque do Ibirapuera, e confesso que me agarrei à esperança de ser reprovado, desfecho suficiente para abortar de vez minha carreira de motorista. E não é que fui um dos dois aprovados? 

De posse da indesejada habilitação, o passo seguinte seria comprar um carro – o que, docemente pressionado em casa, não tive como não fazer. Comprei o Fusca, mas não fui buscá-lo. Todas as manhãs, no táxi rumo à redação da Veja, na Marginal do Tietê, passava em frente à Sabrico, e ao ver os Fuscas no pátio, me batia a consciência culpada de que um deles ali estava na condição de enjeitado. Até que um dia, não tendo mais como espichar o adiamento, fui buscar o carro, com o cuidado de pedir apoio ao colega e amigo Paulo Sotero, que me viu encharcar a roupa de suor no percurso nem tão longo assim até Higienópolis. 

Bem antes disso, vivendo na França, foi na mais espessa ignorância automobilística que encarei coberturas da Fórmula 1 para o Jornal da Tarde. Não devo ter-me saído de todo mal, pois seguiram me enviando aos autódromos. Mas não esqueço a fraude que me sentia quando, ao cabo de uma corrida, ia abordar o Emerson, o Wilsinho, o José Carlos Pace, e deles ouvia explicações técnicas que me soavam como algo assim: “O problema é que o extrafogador de bertrugem dechapou”. Ainda bem que o Jornal da Tarde não cobrou do repórter que soubesse também os nomes daqueles pedais – semelhantes, suponho, aos que hoje conduzem a seu destino um camarada que, no bem-bom do banco traseiro, já não acha que esse seja um problema seu.

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