A vida como um Cabaré

A diva Ute Lemper faz nova incursão pelos cancioneiros francês e alemão no disco Paris Days, Berlin Nights

PUBLICIDADE

Por JOÃO MARCOS COELHO
Atualização:

Em sua encarniçada batalha política na turbulenta e vertiginosamente fervilhante República de Weimar dos anos 20/30 do século passado, Bertolt Brecht cercou-se de Kurt Weill e Hans Eisler, dois parceiros preferenciais de gênio que transformaram seus poemas de luta em cápsulas musicais mais poderosas do que granadas verdadeiras. Numa Berlim que mal se equilibrava, ruindo sob a hiperinflação e a ameaça nazista, floresceu um gênero muito particular, a chamada canção de cabaré. A sensação de beira do abismo, aliás, reinava em toda a Europa. Paris não ficava atrás. Lá também as canções de cabaré se multiplicaram. Um universo em que o mundo e as próprias vidas das pessoas se despedaçavam e os sentimentos eram extremos. E onde reinava o cabaré como desesperada válvula de escape, spa performático para resistentes, colaboracionistas e oficiais nazistas na Segunda Guerra, como bem mostra o clássico filme de Bob Fosse de 1972.É este o território preferencial de Ute Lemper, 49 anos e 25 de reinado absoluto como uma das mais sensacionais "performers" da cena internacional. É impressionante como, a cada vez que revisita este repertório, Lemper o ilumina e surpreende mesmo os que seguem de perto sua carreira. Afinal, ela não pode ser chamada apenas de cantora - embora possua um verdadeiro arsenal de recursos na voz de contralto, dos grunhidos aos mais límpidos agudos, dos graves sombrios a um certo anasalamento escrachado, quando necessário. Por isso, a cada CD novo dela sinto que estou perdendo provavelmente a melhor parte de sua performance: a movimentação teatral, as caras e bocas, o aparato visual de seus shows.As canções de cabaré constituem mais um estado de espírito espraiado a partir daquele momento histórico do século passado. Flertam com o lied, a canção culta alemã para canto e piano que teve em Schubert seu criador máximo; mas se assumem como entretenimento, e aí tornam-se siamesas do grande songbook norte-americano dos anos 20-50 do século passado, onde reinaram nomes geniais como Irving Berlin, Cole Porter e os irmãos Gershwin, entre outros.Há quatro anos não surgia uma nova gravação desta diva do cabaré. Pois, às vésperas de completar seus 50 anos (o que acontecerá em julho próximo), Lemper lança Paris Days, Berlin Nights pelo selo Steinway & Sons. Sim, a célebre fabricante de pianos de concerto preferidos por dez entre dez pianistas no mundo inteiro decidiu lançar-se como gravadora há dois anos. Só tem oito CDs no econômico catálogo, quase todos de piano e um só de música de câmara. Este, com certeza, vai divulgar o selo para públicos mais amplos.Paris, Berlim... o título pode dar a impressão errada. Acompanhada pelo ótimo quarteto de cordas Vogler, grupo berlinense de sólido prestígio no mundo clássico, ela ainda conta com os preciosos arranjos de Stefan Malzew, que toca também piano, acordeom e clarineta. Finas embalagens, que levam estas canções ainda mais para suas raízes schubertianas. Exemplos? Uma antológica leitura, de quase dez minutos, de duas canções conhecidíssimas de Weill, Surabaya Johnny e Die Moritat. E recriações precisas, sombrias como as canções, de três peças de Eisler: Suicídio, Balada do Moinho d'Água e Escavação. Todas compostas sob o impacto dos nazistas destruindo a Alemanha.As finas embalagens de Malzew acentuam o caráter popular das canções ao abordar o lado parisiense. Clássicos como Elle Fréquentait la rue Pigalle, L'Accordeoniste e Ne me Quittes Pas soam tenras e novíssimas, mesmo que nos lembrem o tempo todo de nomes míticos como Jacques Brel e Edith Piaf. Interessante a incursão no songbook de Piazzolla, com versões sanguíneas de clássicos como La Ultima Grela e Yo Soy Maria (hipnotizada pela melodia de Oblivion, Lemper colocou ela mesma uma bela letra).Esta emocionante gravação ainda tem tempo de passar por canções em iídiche e uma russa. Um banquete autêntico de uma cantora completa, que chega à plena maturidade capaz de nos surpreender até em melodias que há muito habitam o inconsciente de todos nós. Pois a arte da interpretação é justamente esta rara qualidade de tornar novo o que, em leituras rotineiras, rebaixa até obras-primas à condição de música descartável.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.