01 de junho de 2012 | 03h26
Breu, a resina preta para calafetar madeira, utilíssima na antiga construção naval, tornou-se com o tempo sinônimo de escuridão total. Também é metáfora para o desconhecimento de alguma coisa, beco sem saída para determinado fato. É, de certa forma, o que o espetáculo quer dizer numa espécie de parentesco como filme o filme Rashomon, o clássico de Akira Kurosawa que relata um assassinato segundo quatro testemunhas.
Há detalhes imprecisos em cada narrativa, como pontos cegos ou buraco negro. O texto Breu, de Pedro Brício, no entanto é permeado por subentendidos que, de alguma forma, o iluminam. Nele, duas mulheres conversam à luz de velas em uma casa não se sabe onde. Uma vaga claridade do quintal ajuda a se perceber o ambiente, móveis e objetos. O assunto delas aparenta ser banal. A dona, fabricante de salgados, entrevista uma forasteira disposta ao emprego de auxiliar no preparo do sanduíche cachorro-quente. A patroa é cega e espera telefonemas que envolvem perigo, a empregada também tem segredos. Aos poucos, algo ameaçador surge de modo difuso e fragmentário. O insólito ou possibilidade de violência se instalam no ar enquanto se fala de açúcar no molho de tomate.
A trama faz alusão à política sem especificar se é o Brasil ou outro lugar. Não importa. São recados sombrios. De outra parte, a encenação, quem sabe, é um jogo existencial com lampejos ideológicos. Para Miwa Yanagizawa, diretora em parceria com Maria Silvia Siqueira Campos, a ideia é levar o espectador a outras experiências sensoriais. Ser estimulado a buscar sinais no invisível. Miwa é taxativa ao dizer que se quis contar fatos sem dados visuais evidentes. O pressuposto faz sentido embora continue desafiador em artes cênicas. O palco, desde o anfiteatro grego, é para ser enxergado.
Realmente não há relação humana isenta de fases de imprecisão. As mulheres de Breu carregam segredos, temores e necessidades. Precisam desconfiar, mesmo que carentes de afeto. Seja porque há um filho fugindo de perseguição militar, seja por uma busca enigmática. Há expectativas nos gestos, pedidos e recusas enquanto a vida supostamente normal corre lá fora. O dia a dia com cachorro-quente.
Com tais opostos, Pedro Brício constrói um labirinto em que cabem música antiga, clarões de memória, banalidades e, bem devagar, a conhecida, imemorial e recorrente solidão humana. A escrita enxuta evita adornos sentimentais e clichês do gênero mistério. Se um telefone toca e não é atendido, isso não significa artifício de suspense; e se é atendido, o pouco que se fala vale por páginas. Porque, pensando bem, o título da peça faz lembrar uma gíria para o que é essencial, o ponto exato: "Pegar no breu." A diferença é que, no caso, ninguém pega em nada.
Já se fez um romance célebre em cima do vazio, O Falcão Maltês, de Dashiel Hammet, mas o dramaturgo prefere que o seu enigma vá além do entretenimento. O mérito do espetáculo em que se vê menos do que o habitual é o de ter força dramática só com insinuações. É desafiador conseguir esse efeito e com ele se chegar a um clima emocional e misterioso ao mesmo tempo. Exige boa técnica das atrizes que devem se impor em um ambiente velado. Requer ainda a ausência de vaidade ao representar quase sem mostrar os rostos. Kelzy Ecard e Natália Gonsales têm esse raro desprendimento, o que as leva a desempenhos intensos em torno do breu. O particular e o da História.
Crítica: Jefferson Del Rios
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