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A vida boêmia na Vila Madalena e em Pinheiros enverga, mas não quebra com a pandemia

Pandemia quase extinguiu a vida boêmia nesses bairros, mas já há bares dando a volta por cima

Foto do author Gilberto Amendola
Foto do author Pedro  Venceslau
Por Gilberto Amendola e Pedro Venceslau
Atualização:

A vida boêmia enverga, mas não quebra. Na Vila Madalena e Pinheiros, bairros da zona oeste de São Paulo, a crise causada pela pandemia da covid-19 fechou casas tradicionais, esquentou o chope e atravessou o samba. Mas, apesar do tombo, já tem gente sacudindo a poeira e se preparando para avisar: “...aqui me tens de regresso”. 

Ó do Borogodó, espaço tradicional do samba de São Paulo que iria fechar, mas que foi salvo por uma vaquinha virtual Foto: Felipe Rau/Estadão

A vitória mais expressiva foi do tradicional Ó do Borogodó. Inaugurado em 2001, o bar começou como um ponto de encontro acanhado de estudantes da PUC e USP e tornou-se, em duas décadas, um dos mais requisitados redutos do samba “raiz” da capital. Mas, fechado desde dia 14 de março de 2020, a casa esteve prestes a desaparecer do mapa boêmio. No início da pandemia, quando ninguém imaginava as proporções trágicas que ela tomaria, os irmãos Stefânia e Leonardo Gola, donos do estabelecimento, improvisaram para pagar as contas: negociaram com os amigos o estoque de cerveja, promoveram lives com músicos e, nos fins de semana, venderam feijoada por delivery. Essa estratégia, porém, não durou muito tempo. “Até dezembro, pagamos os funcionários e nada além disso. O Ó é uma casa de música, não de cozinha”, contou Stefânia.  Depois dos primeiros três meses de aluguel atrasado, o proprietário do imóvel procurou os irmãos com uma proposta. Eles sairiam imediatamente e, em troca, não precisariam pagar os meses de aluguel em atraso. Nada feito. A resistência, porém, custou caro. As contas foram se acumulando até que a dívida com aluguel e multas chegou a R$ 125 mil e uma ordem de despejo chegou.  Após a ação dos proprietários, os irmãos jogaram a toalha. “A gente tinha decidido sair. Não teria nem despedida, já que estávamos na fase roxa.” Para surpresa deles, assim que a notícia foi anunciada, houve uma comoção nas redes sociais.  Foi uma amiga de Leo e Stefânia, a publicitária Camila Freiha, que teve a ideia de gravar um vídeo com os sambistas “da casa” chamando as pessoas para contribuir em uma vaquinha virtual. A meta estabelecida foi ousada. “Não adiantava só pagar o aluguel e evitar o despejo. Nos preparamos para mais um ano de manutenção mínima com as portas fechadas”, disse Stefânia.  A campanha #ficaÓ foi encabeçada pelas sambistas Railídia, Fabiana Cozza e Paula Sanches. Entre os dias 12 e 22 de março, eles arrecadaram R$ 292 mil – valor suficiente para o Ó resistir.  Apesar das dificuldades, Stefânia defende o lockdown e as demais medidas de isolamento. “Não consigo pensar em abrir meu espaço enquanto as pessoas estão morrendo. Fico constrangida quando vejo companheiros donos de casas pregando contra as medidas de isolamento social.” Frequentador dos bares da Vila Madalena desde os tempos em que era aluno da PUC, no começo dos anos 2000, o economista André Perfeito aderiu à campanha #ficaÓ e celebrou a virada de mesa do bar, mas se mostra preocupado com o futuro da boemia na região. “Os comércios que estão fechando garantem a manutenção das casas, que agora ficam muito mais vulneráveis à especulação imobiliária.” Para Perfeito, cada bar que fecha é uma perda “gigantesca” para o patrimônio cultural e imaterial da cidade. “É irreversível. Vai ser impossível voltar ao que era antes.”  Outro ponto tradicional do bairro que vem resistindo com muita luta é o Bar do Baixo. Uma das sócias da casa, Mayara Guimarães Vieira, fala sem rodeios. “Hoje, é um bar falido. Teve um domingo que acabou o gás e a gente não tinha como comprar para fazer delivery.” Ainda assim, Mayara e outros sócios (Xexa, Zanga e Gabi) não se dão por vencidos. “Vendemos carro, pedimos empréstimo no banco, fizemos vaquinha e tudo o que estava ao nosso alcance. Hoje, o delivery é o que nos segura. Somos nós mesmos que fazemos a entrega do delivery para manter o contato com o nosso público. No domingo retrasado, por exemplo, vendemos 90 pratos”, contou Mayara. “Apesar das dificuldades, também participamos de um projeto de doação de marmitas. Já doamos cerca de 5 mil”, completou. Assim como a turma do Ó, o pessoal do Baixo também concorda com o fechamento temporário dos bares. “Acho que tinha que fechar mesmo. A gente é um bar de música que não cobra ingresso, que vive de aglomeração. Quando todo mundo estiver vacinado, o cenário vai mudar. Vamos nos recuperar. Ninguém mais vai querer ficar em casa”, avisou Mayara.  Mudanças. Caminhar pela Vila traz um susto por esquina. Bares tradicionais como Filial e Genésio (reduto de jornalistas) não existem mais – e os garçons históricos dessas duas casas já não estão mais desfilando elegância e cortesia na Rua Fidalga. Agora, o bar do Betinho (e sua tradicional feijoada) também fechou as portas e transformou-se em um prazer do passado. Mas tem mais. Não deixa de ser estranho ver o Morrison Rock Bar temporariamente em silêncio. Também dá um frio na barriga passar pela Mercearia São Pedro e não encontrar nenhum escritor bebendo (hoje, o “merça” está na base do delivery). Ou olhar o Empanadas Bar sem suas mesinhas ocupadas (a casa também está operando em delivery). O Canto Madalena, outro ponto importante do bairro, está temporariamente fechado e lutando para atravessar a tormenta. “Sentimos um soco no estômago logo no início da pandemia. Nosso público é mais velho, não é o público de ‘galera’, é um público consciente. Quando surgiram os primeiros casos no Brasil, sentimos fortemente a retração”, disse a proprietária Tita Dias. Tita chegou a pegar empréstimos, mas novos fechamentos prejudicaram a contabilidade apertada da retomada. Hoje, Tita diz que tem como manter as coisas em ordem até o mês de agosto. “Não tem como prever o futuro. Estamos na espera da vacina. Vamos tentar até agosto. Se não mudar até lá vai ser muito difícil”, falou. Na pandemia, outra referência da região assustou seus frequentadores. No meio da pandemia, o São Cristóvão fechou suas portas na badalada Rua Aspicuelta. Felizmente, tratou-se apenas de uma mudança. O bar, agora, está em um ponto menos barulhento e mais adequado ao seu público, uma esquina na Rua Purpurina (onde antes ficava o saudoso bar Sabiá).  “A mudança foi ótima. Aquela rua (Aspicuelta) está deflagrada. Não tem mais nada a ver com boemia. Virou uma coisa de classe média baladeira, que só sai aos fins de semana. Meu conceito de boemia não é esse”, afirmou. “O público ali virou predador, os bares são iguais e todo o entorno de pequenos comércios foi afetado. Boemia é cultura. Não é o que está acontecendo ali”, completou o proprietário do São Cristóvão, Leonardo Silva Prado. Feliz com a mudança, Leonardo também é otimista com o futuro pós-pandêmico. “Estou no ramo há 42 anos. Já passei por inflação de mil por cento, por Plano Cruzado, Plano Verão, Plano Collor, Plano Bresser, Dilma, desgoverno Bolsonaro e pandemia. São Paulo tem uma dinâmica, uma pulsação. Assim que for seguro, vamos recuperar todo esse tempo perdido”, afirmou. Apesar das dificuldades, e da tristeza de casas fechadas, a única opção para os bares que resistem é saírem melhor desta pandemia. Para Jean Ponce, sócio do Guarita Bar, “os bares vão precisar de um propósito para continuar em pé”. “Nós precisamos ser um espaço de acolhimento, de respeito com os clientes e funcionários. Vamos ter que, cada vez mais, deixar claro que trabalhamos com amor e, de novo, propósito”, garantiu. O músico e empreendedor Guga Stroeter já foi sócio de casas históricas nos bairros de Pinheiros/Vila Madalena, como o Blen Blen e o Grazie Dio. Recentemente, por conta da pandemia, encerrou o ciclo do relevante Centro Cultural Rio Verde (que era casa de shows, estúdio, teatro, espaço para ensaios...).  Apesar da situação momentânea, Stroeter tem uma filosofia positiva sobre os futuros negócios na região. “Há uma tríade antropológica poderosa que sempre encontrará mecanismos de se presentificar: uma voz que canta, um instrumento que é tocado e um corpo que dança. (...) Por isso, sou otimista. Esse padrão só silenciará quando for extinto o último exemplar da espécie humana... e oxalá a Vila Madalena pós-pandemia possa prosseguir cumprindo essa vocação de acolher cordas, sopros, tambores... ainda mais no Brasil, ainda mais em São Paulo onde todo o Brasil se encontra.” 

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