A versão 'afro' de um melodrama de Sirk

Lee Daniels não deixa de ter feito o seu 'Imitação da Vida' com a história de 'O Mordomo da Casa Branca'

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Quentin Tarantino reabriu, pela via da aventura (fantasia?) - e com as ferramentas do spaghetti western -, as feridas da escravidão na consciência norte-americana. Ganhou dois Oscars, roteiro original e ator coadjuvante (Christoph Waltz), por Django Livre. Existem agora dois filmes que também abordam o período e estão pavimentando sua candidatura para o próximo Oscar. O Mordomo da Casa Branca estreou na sexta. 12 Years a Slave fica para mais adiante. O Mordomo tem sido descartado como 'novelão' por parte da crítica brasileira. Talvez o tema não bata aqui da mesma forma que nos EUA, mas o repórter testemunhou algo raro. Em Nova York e Los Angeles, as plateias, espontaneamente, aplaudiram os longas de Lee Daniels e Steve McQueen no fim das sessões. E não eram sessões de festivais - os filmes estão no circuito comercial.No Rio, Lee Daniels disse ao repórter algo que talvez pareça inusitado - Precious, que lhe deu projeção, é seu pior filme. O preferido é Paperboy/Obsessão e O Mordomo se situa no meio, 'quase tão bom', ele diz. Nos EUA, o filme chama-se O Mordomo de Lee Daniels, o que pode parecer excessivo - com exceção de Federico Fellini, não é frequente que autores coloquem os nomes nos próprios filmes. Daniels jura que não teve nada a ver com isso. Foi decisão dos executivos do estúdio, já que havia uma questão de direitos impedindo que ele usasse só 'O Mordomo'.O filme começa numa antessala da Casa Branca, com o velho Forest Whitaker de volta ao cenário de boa parte de sua vida. Há um corte e começa o flash-back, que o lança no passado distante, quando ele, garoto numa plantação de algodão, viu a mãe escrava ser estuprada e o pai ser morto pelo sinhozinho branco. Por piedade, ou consciência do mal praticado por sua descendência, Vanessa Redgrave - tinha de ser ela - acolhe o menino na casa senhorial e o ensina a 'servir'. É o que ele fará a vida toda, como mordomo de sucessivos presidentes na Casa Branca.É interessante acompanhar grandes momentos da história dos EUA no século 20 desse outro ângulo - da cozinha da Casa Branca. O assassinato de John Kennedy, o escândalo de Watergate. Mas as questões do filme são outras. Por que bebe a mulher do mordomo? Ela certamente tem uma vida confortável de classe média, e isso só podia ocorrer em Washington D.C., numa época em que a segregação ainda era praticada no Deep South, o Sul Profundo. Talvez exista aí um desgosto pela (eterna) submissão do marido, mas essa mulher resiste, à sua forma. Expulsa a ativista negra, estilo Angela Davis, companheira do filho e que quer humilhar o mordomo. Expulsa o 'amigo' que avança e quer fazer dela sua amante. Não é um 'novelão', mas um melodrama, nos moldes do melhor Douglas Sirk, a versão negra de Imitação da Vida, o clássico sirkiano de 1959.Boa parte de O Mordomo da Casa Branca trata justamente da luta por direitos civis. O filme termina no momento em que, na Casa Branca, há um presidente negro, mas o protagonista da história não está mais lá para servi-lo. Ninguém, tem bola de cristal para antecipar que O Mordomo irá para o Oscar. É muito possível que, no limite, vá o 12 Anos de Escravidão, de Steve McQueen, com Ejiofor Chiwetel. Mas será um escândalo se Forest Whitaker e Oprah Winfrey não forem indicados. A Academia, que não a premiou como coadjuvante, em 1986 - por A Cor Púrpura, de Steven Spielberg -, tem agora a chance de fazer justiça. Oprah é excepcional.

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