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A verdade, sempre inalcançável

Coletânea revela as diferentes faces da obra do austríaco Karl Popper, nome fundamental do saber contemporâneo

Por Regina Schöpke
Atualização:

Quando Diógenes Laércio, em sua biografia dos antigos filósofos, afirmou que "o ceticismo é a sombra da filosofia", ele parecia querer dizer, entre outras coisas, que a dúvida é uma espécie de fantasma que assombra os filósofos ou, mais exatamente, que talvez a verdade nunca seja totalmente "verdadeira". Explicando melhor: o ceticismo é uma espécie de certeza da incerteza, ou seja, é saber que nada se sabe ou que sempre se saberá apenas em parte e nunca de modo absoluto. E aqui não estamos falando apenas da escola cética grega, mas de uma orientação geral do espírito para sempre se perguntar se aquilo que se sabe é mesmo verdadeiro ou se não passa de uma ilusão. É claro que esta tendência se opõe ao racionalismo mais dogmático, que se assenta não apenas na convicção de que podemos chegar à verdade das coisas e dos fatos, mas de que ela existe de modo único, universal e válido para todos os tempos e lugares.Sem dúvida, Diógenes Laércio conhecia bem estas duas tendências, mas, ainda assim, ele atribui à filosofia a marca de um ceticismo puro, originário - talvez porque, para ele (como, aliás, também para nós, sobretudo, depois de Nietzsche), a ideia de verdades absolutas e de conhecimentos indubitáveis acaba levando à produção de mitos e dogmas, onde o próprio saber termina por ganhar ares de religião. Certamente, nada é menos filosófico do que a ausência de crítica e reflexão. Sim... de fato, a filosofia apareceu (e é isto que lhe confere um caráter singular e original) como uma forma de "debate crítico", para usar as palavras de um dos maiores epistemólogos do século 20: o vienense Karl Popper (1902-1994).De fato, Popper considerava realmente extraordinária a aparição da filosofia grega, que ele entendia como um diálogo permanente com o mundo, como uma busca incessante pela verdade das coisas. Em um artigo (que integra a edição de seus Textos Escolhidos, lançada pela Contraponto), Popper apresenta os primeiros filósofos como aqueles que estimulavam seus próprios discípulos a atirarem mais longe o dardo do saber (ele excetua apenas Pitágoras, que ainda conservaria a antiga postura do sábio como "mestre da verdade"). É isso que ele chama de "debate crítico": este diálogo, direto ou indireto, que se estabeleceu entre as escolas filosóficas e também no interior de cada uma delas, mostrando que o autêntico racionalismo é aquele que reconhece as limitações do conhecimento, embora jamais desista de buscar a verdade, ainda que ela sempre lhe fuja.Sim... para Popper, a verdade é inalcançável, embora seja possível aproximar-se dela, e é assim que ele cita os pré-socráticos Xenófanes, Heráclito e mesmo Demócrito para justificar sua ideia de que nunca teremos absoluta certeza de que algo é plenamente verdadeiro, embora possamos saber quando é falso. Aliás, esta é a tese fundamental de Popper: podemos até não saber exatamente qual é a verdade das coisas, mas sabemos o que não é verdadeiro e é isto que determina o progresso da ciência (e também o próprio progresso humano, como ele mostra em outros artigos contidos nesta coletânea).Popper, que ficou célebre justamente por estabelecer que o autêntico método científico é o da falsificabilidade ou refutabilidade, também conhecido como falseamento ou falsificacionismo (única forma, para ele, de lidar legitimamente com as "verdades" científicas), é um crítico implacável da indução (que, desde Aristóteles, teria dado à ciência o caráter de um saber seguro e indubitável). Para Popper, a ideia de que podemos atingir com segurança a verdade ou de que é possível testar empiricamente uma teoria revelam-se ambas profundamente equivocadas, já que a primeira não passa de uma construção mental, racional, e a segunda não nos oferece nenhuma possibilidade de confirmação irrestrita e absoluta. Afinal, como já dizia Hume, o que chamamos de "lei científica" pressupõe a transcendência do sensível e da percepção, pois é somente indo além das próprias sensações que se pode afirmar que tudo sempre se dará da mesma maneira. Quando temos, por exemplo, a ideia de que o sol vai se "levantar" todas as manhãs, isto não nasce apenas da observação empírica, mas de uma "crença na repetição", sem a qual não se pode fundar a ciência nem estabelecer qualquer uma das suas leis.Esta notável coleção de 30 textos (selecionados pelo renomado filósofo britânico David Miller), apresenta as diversas facetas da obra de Popper, dividida entre a teoria do conhecimento, a filosofia da ciência, a metafísica e a filosofia social. Em tudo e por tudo, trata-se de uma excelente oportunidade para vislumbrarmos, em seu conjunto, um pensamento que contribuiu decisivamente para a reflexão do saber contemporâneo, no qual - tal como o Aquiles do paradoxo de Zenão - cada vez mais se aproxima da verdade, sem nunca poder alcançá-la.REGINA SCHÖPKE É FILÓSOFA, HISTORIADORA E AUTORA DE MATÉRIA EM MOVIMENTO: A ILUSÃO DO TEMPO E O ETERNO RETORNO (MARTINS)

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