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A velha guerra

Por Luis Fernando Veríssimo
Atualização:

Goethe teve um romance passageiro com a Revolução Francesa, que liberou mais demônios do que ele estava disposto a aceitar. Vem daí sua famosa declaração de que preferia a injustiça à desordem. Goya foi um entusiasta de primeira hora de Napoleão mas horrorizou-se com as atrocidades da guerra na Espanha, que retratou com ácido e asco na sua série de gravuras Desastres de la Guerra. Acabou desencantado também.Mas o desencanto de Goethe e Goya não é o mesmo dos que lamentaram o fim da velha ordem, para os quais a Revolução Francesa significou não a derrota do despotismo e da injustiça mas um crime contra a natureza do homem. Confundir ordem e normalidade com seus próprios privilégios é um velho hábito de castas dominantes. Na literatura da contrarrevolução, tão vasta e influente quanto a literatura da revolução, o que aconteceu na França dos Bourbons foi uma segunda Queda do Homem, uma segunda perda do Paraíso. Só quem tinha vivido antes da revolução - outra frase famosa - conhecia as delícias da vida. Delícias que incluíam não apenas os privilégios do absolutismo mas do mundo como ele devia ser, com todas as suas injustiças naturais.A Revolução Russa também provocou dois tipos de reação, a do desencanto com seus excessos e descaminhos depois da empolgação inicial, como o de Goethe e Goya com a Revolução Francesa, e a dos que a condenaram desde o princípio como antinatural. E também provocou dois tipos de literatura. Se todos os que acham que liberdade, fraternidade e igualdade é um slogan ainda aproveitável são filhos da antiga retórica da revolução, os reacionários de hoje são filhos da antiga retórica da restauração, mesmo que o vocabulário tenha mudado. Para estes o fracasso do comunismo soviético na prática representou o fim do ideal iluminista e a recuperação do homem natural.A celebração do "bom senso" neoliberal contra a "falácia da compaixão", como a descreveu alguém, significa mais um triunfo reacionário na velha guerra. E estamos de volta ao delicioso paraíso do egoísmo sem culpa e das injustiças naturais sem remédio.

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