A vanguarda ''atemporal'' de William Parker

O ícone do underground nova-iorquino, que toca em SP este fim de semana, fala sobre suas filosofias musicais

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Por Roberto Nascimento
Atualização:

Poucos protagonistas do free jazz moderno se equilibram entre o tradicional e o revolucionário com a graça de William Parker. Em uma discografia que passa dos cem títulos, o baixista mais consistentemente brilhante da história da música livre, título concedido pela crítica do Village Voice, se mostra um explorador incansável das propostas vanguardistas de Ornette Coleman, ao mesmo tempo em que carrega uma profunda reverência pela herança da música afro-americana. Em conversa, Parker é quase um mestre zen: "O passado não existe", conta ao Estado. "Existe apenas o presente. E o que quero dizer com isso é que quando algo é belo, forte, verdadeiro, é atemporal. No momento em que Coleman Hawkins toca o saxofone, não há passado ou futuro. Há simplesmente o momento", diz, dando o exemplo do legendário músico dos anos 40, um dos avôs do bebop.A questão do tempo vem à tona em seu último disco, em que relê canções do soul man Curtis Mayfield, fazendo uma excursão por um universo muito mais concreto do que o que está acostumado a frequentar. I Plan to Stay a Believer: The Inside Songs of Curtis Mayfield recria a urgência política e racial do cantor negro num contexto de improvisação livre altamente expressivo. "A chave de Mayfield não é a própria música, que é basicamente em um tom só e fácil de tocar. A chave é o jeito com que ele a interpreta. E isso é o que me interessa", diz. "Não é possível tocar Ellington melhor que Ellington, Mingus melhor que Mingus. Mas é possível achar o ponto de vibração mais forte, o ápice onde os impulsos criativos se encontram e partir desse ponto." Para os adeptos do free jazz, Parker é um ícone. Em mais de 30 anos de carreira, tocou com todos os grandes e teve impacto imensurável na vanguarda da música improvisada como músico, agregador, poeta e professor. Quem conseguiu ingressos para assistir a Yusef Lateef no Sesc Pompeia poderá vê-lo em ação.Parker se formou na "loft scene" nova-iorquina do fim dos anos 70, reduto de músicos como Don Cherry e Ed Blackwell, onde conheceu o pianista Cecil Taylor, figura importantíssima da música do século 20. Gravando com Taylor durante boa parte dos anos 80, Parker chamou a atenção da crítica pelas ricas texturas que criava com o arco no registro alto, e pelo dedilhado bojudo, que remete à pegada de Paul Chambers e Charles Mingus, com que tece seus acompanhamentos. Nos últimos 15 anos, Parker se tornou uma das figuras centrais da cena free de Nova York. A exemplo de sua Little Huey Orchestra, seus grupos viraram verdadeiras escolas musicais, uma tradição que tem precedentes nas orquestras de Duke Ellington e nos grupos de Charles Mingus, Art Blakey e Benny Carter, verdadeiras usinas de talento jazzístico. Além disso, há mais de uma década o baixista e sua mulher, a dançarina Patricia Nicholson, organizam um dos mais importantes festivais de música da cidade, o Vision Jazz Festival. Sua aura de mestre fica clara com o tom delicado e os conselhos que permeiam seu discurso: "Tenho alunos que chegam a mim e dizem: "Eu transcrevi todos os solos de Coltrane, mas ainda não consigo tocar". Eu digo: "Mas a música de Coltrane era para Coltrane. Você é como um peixe que tenta voar". O peixe diz "Eu não consigo chegar lá em cima". Eu digo "Mas você é um peixe, tem de mergulhar, não voar"". No entanto, a mais emblemática de suas filosofias surge quando Parker volta ao assunto inicial: "Muito se fala sobre o novo. Mas o pôr do sol é o mesmo todos os dias e toda vez que nós o vemos, dizemos: "poxa, que coisa mais linda". É o mesmo com o vento soprando, o mar indo e vindo. As flores! Tem coisa mais vanguardista que uma flor? Flores e nenéns". E por aí vai.

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