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A utopia libertária de Yoko Ono

Em Veneza, onde expõe a instalação Nutopia, a artista fala sobre sua vida, as saudades de John Lennon e os efeitos do 11 de setembro

Por Agencia Estado
Atualização:

Nos anos 70, diante da ameça de banimento dos Estados Unidos, John Lennon e Yoko Ono criaram Nutopia, país imaginário do qual se declararam cidadãos e primeiros embaixadores. Três décadas depois, a viúva do ex-Beatle voltou a lançar mão da cidadania daquele país fictício para participar da Open2002 International Exhibition of Sculptures and Installations, exposição de arte contemporânea ao ar livre, que há cinco edições ocupa as ruas de Veneza com obras de artistas de diferentes partes do globo. A Nutopia de Yoko é uma das 39 nações representadas na mostra, que este ano tem como tema O Imaginário Feminino. As peças estarão ao alcance da curiosidade pública até 6 de outubro. Yoko passou por Veneza para conferir a montagem de sua obra e conversou com o Estado sobre vários assuntos. Trata-se de uma instalação composta por cem caixões de madeira. No interior de cada um dos caixões, germinam brotos de oliveira. A composição foi convenientemente espalhada num terreno próximo do cemitério do Lido. Vestindo blazer bege e calça preta, os indefectíveis óculos no rosto, a artista posou entre as dezenas de peças que compõem a instalação. Não se contrange ou se intimida com a presença da imprensa. "A oliveira simboliza a vida e o renascimento", explicou a artista multimídia de 69 anos. "Pensei nessa instalação como homenagem à memória de cada raça, de cada país do planeta. Ela representa a lembrança do genocídio, a dor, o horror e a cura. Acho que os mortos gostam que nós nos lembremos deles. Nossas lágrimas ajudarão a restaurar a memória deles." Batizada de Nutopia, a instalação de Yoko é a de aspecto mais fúnebre (e a de maior extensão) das 43 peças que ocupam as calçadas e jardins do Lido. Mas é também a que contém maior conteúdo político e humanitário - a bandeira nutopiana é branca, símbolo da paz. Além da notória cidadã de Nutopia, participam da mostra artistas da Bolívia, Bulgária, Indonésia, Estados Unidos, Israel, Coréia, România, África do Sul e Albânia, entre outros países. A brasileira Debora Hirsch está representando o Brasil com a instalação The Last Supper (A Última Ceia). A idéia para a instalação, segundo Yoko, surgiu durante uma visita ao Palazzo della Ragione, em Pádua, Itália, anos atrás. "De passagem por aquela cidade, visitei um prédio antigo, de pedra, construído séculos atrás. De repente, sem nenhuma explicação ou apresentação, um homem me levou para o segundo andar da construção, onde um enorme espaço se abriu diante de mim, como um grande salão de baile. Em minha cabeça, comecei a ver filas e filas de pessoas penduradas naquela sala. Foi aí que o homem que havia me levado até ali me explicou que aquele salão costumava ser usado para execuções. Não se tratava de um espaço para festas!", lembrou a artista. Criação - A chocante revelação do mistérioso guia mexeu ainda mais com a fértil imaginação de Yoko. "A partir daquele instante, passei a enxergar naquele espaço de lembrança fúnebre muitos caixões de madeira, contendo os corpos não só de homens, mas também de mulheres e de crianças. Mas, na minha cabeça, de cada um desses caixões começavam a brotar árvores. E essas árvores eventualmente se transformavam numa floresta. Pássaros voavam e cantavam entre seus galhos. Era uma visão que me dava a sensação de alguma forma de esperança", explicou a artista, que também compõe e escreve poesia de vanguarda nas horas vagas. A palavra esperança há muito foi incorporada ao discurso da artista japonesa. De certa forma, também exprime um estilo de vida. Sem ela, Yoko não teria conseguido superar as tragédias que vez por outra lhe atravessam o caminho. A perda de John Lennon, assassinado em 1980, na porta do prédio do casal, em Nova York, ainda é a mais dolorosa delas. "Ainda penso muito em John. Sinto muito a falta dele. E cada vez que me dou conta do que aconteceu com ele, fica difícil pensar no futuro de maneira positiva. Mas tento manter a cabeça erguida e seguir em frente", confessa a viúva. Mulher pequena e de gestos mínimos e contidos, Yoko mantém o tom de voz cordial mesmo quando compelida a comentar outra tragédia, esta mais recente e de efeitos globais: os ataques terroristas a Nova York, onde ainda mora, no ano passado. "O mundo mudou depois daquele 11 de setembro, certamente. Mas, passado um ano daqueles acontecimentos terríveis, devemos parar e pensar no lado positivo da tragédia: depois dos ataques nos tornamos mais unidos, mais solidários. Em Nova York, hoje, respiramos um ar mais familiar e amigável. Foi uma tragédia horrenda, sim, mas que acabou nos ensinando a redescobrir o valor do contato com o próximo." A instalação que Yoko trouxe para o Lido expressa a crença da artista na possibilidade de a humanidade aprender com os próprios erros. "O homem é o responsável pelo próprio destino. É uma verdade que vale tanto para os anos 60 quanto para os dias de hoje. Mesmo nos anos 60, que foram, de certa forma revolucionários, fizemos coisas positivas mas, na época, não atentamos para o perigo de certas coisas, como as drogas, por exemplo. Porque a droga fazia parte daquela revolução. Mas era uma revolução somente para os homens, não para as mulheres", analisa a artista. Embora mantenha uma atitude positiva sobre o futuro, Yoko usa o passado como porto seguro. Como filha legítima e uma das protagonistas da contracultura, do desbunde, ainda acredita num mundo sem injustiças, sem barreiras. "Todo mundo é um artista. Todo mundo pode ter um passaporte de Nutopia, diz, referindo-se ao manifesto de 1973 que lançava a idéia de um país sem guerra e sem fronteiras. "Nutopia está na nossa mente, está dentro de cada um de nós. Lá não nos sentimos confinados, porque não há fronteiras. A bandeira de Nutopia é branca, a bandeira da paz." Imagine, canção do último disco do cantor, Double Fantasy, lançado no ano de sua morte, poderia ser o hino de Nutopia. "Quando John escreveu Imagine, não tínhamos idéia que pudesse fazer o sucesso que fez", comenta Yoko. "Creio que ainda hoje haja naquela canção uma mensagem positiva para as novas gerações." Sobre os próximos projetos, é evasiva. "Não faço planos para o futuro. Sigo adiante, dia após dia. O único objetivo certo é o amor que sempre existirá e que jamais morrerá."

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