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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

A última festa

Rita colocou um documentário sobre Paris na TV e se pôs a choramingar. 'Nunca conheci...'

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

Rita estava lavando a louça quando ouviu, sem prestar muita atenção, alguma coisa sobre armas nucleares. Secou as mãos molhadas de Limpol e correu para a sala. Demorou uns segundos para achar o controle remoto – que estava enfiado em um vão do sofá. Mesmo sem nenhuma necessidade, aumentou o volume da televisão. A notícia era clara... Quando o filho chegou da escola, encontrou o seu bolo preferido em cima da mesa. Na vitrola, um álbum dos Beatles. – É aniversário de alguém? – Só quis te fazer um bolo, Jorginho. Aproveite. – Vou tirar o uniforme para não sujar de chocolate. – O gostoso é se lambuzar. Jorginho estranhou o desapego da mãe com a impecabilidade do seu uniforme, mas preferiu não discutir. – Que música é essa, mãe? – Faz tempo que eu tô pra te mostrar. São os Beatles... – Legalzinho. – Escuta essa aqui. Como está o seu inglês? Ela se chama When I’m Sixty-Four. – Ah, acho que são 64 anos, né? O cantor tinha 64 anos. – Quando gravou essa música, ele só tinha 24 anos. Agora, já tem quase 80.  – Nossa, imagina quando você tiver 64, mãe. E eu? Acho que já vai ter carros voadores... Rita tentou disfarçar, mas sentiu o coração apertar. A campainha tocou no apartamento de Rita. Eram duas vizinhas chegando com minicoxinhas, garrafas de vinho e um engradado de cerveja. – Que festa é essa, mãe?

Imagem ilustrativa de cupcakes em festa de aniversário Foto: Pixabay/@cbaquiran

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– Festa nenhuma. A gente só quis fazer uma reuniãozinha. Uma das vizinhas, dona Filomena, aproximou-se de Jorginho e perguntou: “Você tem namorada?”  O menino, encabulado, disse que não. – Vou buscar minha sobrinha agora. Ela tem a sua idade – disse Filomena. Outros vizinhos chegaram no apartamento trazendo quitutes, sorvetes e bastante bebida alcoólica.  Rita colocou um documentário sobre Paris na televisão e começou a choramingar. – Nunca conheci. Não tive a chance. Filomena, enfim, entrou com a sobrinha pela mão. Na vitrola, saíram os Beatles. E os sucessos de Roberto Carlos foram cantados em uníssono pela turma. No celular de Rita, a notícia sobre um botão que já havia sido apertado. – Beija, beija, beija – gritavam para Jorginho e para a sobrinha de Filomena. No início, eles não estavam entendendo nada. Logo depois, não haveria mais nada para entender – nem o tempo, nem o espaço. Impossível saber se Jorginho beijou. 

*Gilberto Amendola é repórter do Estadão e observador da vida cotidiana

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