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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|A torre da família bolha

Atualização:

A arqueologia procura ver nas habitações escavadas como eram nossos antepassados, como evoluímos, quais eram nossos costumes secretos. Cientistas de chapéu e colete de couro fuxicaram a intimidade de "antigos nós" sem pedir licença. Escreveram tratados e biografias não autorizadas, interpretaram nossa cerâmica, pintura rupestre, adorno. Até nossos lixos fuxicaram. Paparazzi com autorização e financiamento do mundo acadêmico.O que descobriram, além de que sabemos desenhar bisões? A cidade representa a transição do homem neolítico para o agricultor. Uma cidade só era possível com comida e água abundante. No começo de tudo, o homem morava perto do trabalho. Construiu cidades próximo ao trabalho. As primeiras nasceram na Mesopotâmia, que tem a maior reserva de água doce do planeta. Recentemente, descobriu-se que o vilarejo mais antigo da humanidade, Göbekli Tepe, construído há 12 mil anos, fica na Turquia. O arqueólogo alemão Klaus Schmidt começou a escavar em 1994. Primeiro achou um templo com pilares em forma de T. Por que começamos a construir? E por que na Turquia?Porque foi onde houve a mutação de uma gramínea chamada trigo, que proporcionou a confecção do pão, fácil de armazenar e transportar. O homem começou a construir cercado por aquilo que o alimentava, trigo selvagem. Como bem sabe todo português: a humanidade se desenvolveu graças aos padeiros.Hoje, olhando os lançamentos imobiliários das cidades congestionadas e amedrontadas, se vê a união de casa, área com lazer de um clube e anexo comercial. Não é perfeito? O homem mora e trabalha cercado pelo mesmo muro neolítico. Se diverte, se exercita e se liberta do que há de ruim nas cidades. Cultura? Uma rede de distribuição de filmes, peças, óperas, eventos esportivos e shows está disponível por banda larga. Tem as redes sociais, para fazer novas amizades e realimentar as antigas. Tem ensino à distância, para se aprimorar. Sair de casa? Pra quê?Esquece calçadas, passeios a pé, comércio de rua, sorvete da esquina, banca de jornal, pipoqueiro, mamães com carrinhos de bebê, parquinho, mesinha de damas dos aposentados, quadra em que um filho pode jogar e conhecer um garoto de outro bairro ou classe social. Esquece as padarias.Como o homem do neolítico, passamos a morar onde trabalhamos. Nas nossas bolhas. Em megacavernas. Eventualmente, em nosso SUV, visitamos outra caverna gigante, templo de compras: o shopping. Somos mais saudáveis e viveremos com mais segurança. Mas a que preço?*Meu pai construiu prédios com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Dava os nomes. Anunciava nos jornais. Até hoje, uma das coisas que mais gosto de fazer é ver anúncios imobiliários. Não estou atrás da garrafa de uísque que algumas incorporadoras oferecem para aqueles que visitam lançamentos residenciais e comerciais - ou melhor, empresariais, afinal, não somos mais comerciantes, mas empreendedores. Para ganhar uma garrafa, é "obrigatório" passar pelo atendimento do corretor. E é válido apenas para as 50 primeiras pessoas que visitarem o plantão. O que não é problema para meus amigos bebuns, que vão direto do bar. Que farra...Há anos que me debruço fascinado sobre os anúncios, apesar de já ter a chamada casa própria. Ver como as pessoas pretendem morar é um exercício de arqueologia contemporânea. Ver como pretendem morar na vizinhança, voyeurismo. Sem contar a inveja saudável de futuros vizinhos bem-afortunados (literalmente).Uma revolução acontece entre as coberturas e o térreo. Lançamento de alto padrão não vem com uma simples portaria, mas com "porta cochère". Outros não são apenas condomínios, mas "condomínios resort". Armário embutido desapareceu junto com o tigre da tasmânia. O quarto de empregada foi extinto. Alguns apartamentos vêm sem o quarto, mas com um banheiro na área de serviço. Seria o banheiro da diarista? Ou melhor, da "femme de ménage"?Aliás, prédios não se chamam mais prédios, mas torres. Alguns se chamam "residencial". Outros, "boulevard". Alguns têm varanda gourmet, o sonho de todo morador de prédio, digo, torre: terraço com churrasqueira. Outros vêm com fechadura biométrica, serviço pay-per-use, piscina com fundo infinito, fitness center, que antigamente chamávamos de academia, e a última onda, um espaço dedicado a seu quatro patas, agora popularmente conhecido como pet, cujo nome varia: space dog, pet garden, pet place, pet care, pet walk, pet play, pet space.A maioria dos apartamentos está menor. Recentemente, um lançamento de 18 metros quadrados foi avacalhado nas redes sociais. É o espaço de três metros por seis. Apertado, mas dá. Nos idos tempos, se chamava quitinete, de kitnet. É a medida do apezinho do famoso Bloco B do Copan, antes, terra de ninguém (sã), hoje, valorizadíssimo. Há poucos anos, os prédios vinham com lounge. Já ficou démodé. Como a sauna. Pelo visto, ninguém mais quer aliviar tensões apertado sobre um tablado de madeira, sufocado por calor e essência de eucalipto, suando com vizinhos, síndico e subsíndico, relembrando a última reunião condominial. Não se veem mais lançamentos de quatro quartos, como no boom imobiliário da classe média alta da década de 1970. As famílias diminuíram. Mas aumentaram o número de vagas para carros. Menos filhos, mais carros. Dá menos trabalho. Estamos ficando tão estranhos...O mercado não dorme no ponto, se renova. A PDG lançou o produto "vem com tudo". Imóveis já decorados. Imóveis com móveis planejados. Compra o imóvel de um, dois, três dormitórios, e ganha o móvel, ganha sala, cozinha, quartos e banheiros. Sensacional. Por que não pensaram nisso quando comprei a minha casa própria? Vou também inovar. Me associar a um site de relacionamento matrimonial, encontrar a cara metade do cliente, a outra face da laranja, através de um programa que calcula por algoritmo as afinidades dos proponentes. Que ganham, no meu futuro empreendimento imobiliário, sala, cozinha, quartos e banheiros, um beagle saudável sem o selo Royal, uma adega com vinho, uísque, vodca e saquê, um marido ou uma esposa! E um ano de ração grátis. Para o pet. Onde está o telefone do Mendes da Rocha?

Opinião por MARCELO RUBENS PAIVA
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