A tensão de dois alfabetos

A retrospectiva de Mira Schendel e León Ferrari chega ao Brasil

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Por Camila Molina
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O ano de 1964 foi "crucial" para as trajetórias da artista suíço-brasileira Mira Schendel (1919- 1988) e do argentino León Ferrari, hoje, com 89 anos. Mira abandonou a pintura para se dedicar a obras sobre papel e Ferrari criou o emblemático Quadro Escrito, no qual descreveu, literalmente, como seria sua tela "caso Deus o tivesse abençoado com o talento para a pintura", além de fazer a escultura Torre de Babel. Foi, para o curador venezuelano Luis Pérez-Oramas, o momento de voo das carreiras dos dois criadores, o "ponto de inflexão" de suas trajetórias - e se Mira e Ferrari, sem se conhecerem, fizeram "desenhos escritos" nos mesmos anos, esse "elemento fundamental" não merecia um mergulho? Oramas seguiu sua pergunta e concebeu a mostra León Ferrari e Mira Schendel: O Alfabeto Enfurecido, retrospectiva que é inaugurada hoje, na Fundação Iberê Camargo, com debate com os críticos Andrea Giunta, Rodrigo Naves e o curador.            Veja também: Galeria de fotos com obras dos dois artistas     Antes de chegar ao País, a mostra foi apresentada, desde abril do ano passado, no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) e no Museu Reina Sofia de Madri, na Espanha. "A escrita, em desenho, se transformou em possibilidade de linguagem", diz Oramas, curador, desde 2003, do Departamento de Arte Latino-Americana e de Desenho do MoMA. Mira se voltou à escrita, desde as monotipias sobre papel-arroz, de maneira obsessiva, em obras de ensejos existencial e religioso. "Mira tem ironia e angústia", define Oramas. Já Ferrari misturou a política e a religião em "sarcasmo corrosivo" ora escrevendo, ora emaranhando traços em trabalhos sobre papel. De alguma maneira, Alfabeto Enfurecido (que encerra em Porto Alegre sua itinerância) nasceu de um diálogo formal entre as obras da década de 60 dos dois artistas. "Mas a forma não existe sem conteúdo e a ideia deles era produzir o visível capaz de tocar o mundo", defende o curador. A matéria, escrita, se transforma em voz, em até corpo. A retrospectiva se desenhou a partir das aquisições do museu americano (principalmente, em 2005) de conjuntos de obras dos dois artistas. "Quando entrei, só tínhamos uma gravura de Ferrari na coleção", diz Oramas. Para o próprio artista argentino, que entre 1976 e 1991 viveu em São Paulo e só na década de 1970 "conheceu superficialmente" Mira, foi uma surpresa o mote da exposição, como conta o curador. Tensões. Em cada local pela qual passou, a mostra, reunindo 180 obras (de instituições e coleções particulares), ganhou configurações diferentes. A que menos agradou a Oramas foi a do Reina Sofia. "Foi a versão mais conservadora, fazendo perder um pouco as tensões entre as obras dos artistas." Na Fundação Iberê Camargo, Alfabeto Enfurecido tem um percurso cronológico da década de 1950 a 2007 e ocupa desde o hall térreo do prédio - com a instalação Ondas Paradas de Probabilidades - Antigo Testamento, Livro dos Reis I, 19 (1969) de Mira (feita de fios de nylon pendurados e texto na parede sobre placa de vidro) e esculturas de ferro de Ferrari -, até os 2.º e 3.º andares do edifício. Ganham destaque, afinal, as obras da década de 1960 - de Mira, os vários conjuntos de Droguinhas (obras gestuais feitas apenas de papel japonês retorcido)e o Trenzinho (1965). CRONOLOGIACaminhos Paralelos 20 de outubro de 1951 - Primeira BienalMira, que vivia em Porto Alegre, participa da 1.ª Bienal de São Paulo, em 51 - desde então, esteve em 9 edições do evento. Muda-se, em 1953, para São Paulo.15 de fevereiro de 1955 - Estreia de FerrariO argentino, que vivia em Roma desde 1953, inaugura a sua primeira mostra na Galleria Cairola de Milão.22 de julho de 1965 - LondresMira participa da exposição Soundings Two, na Signals Gallery, convidada pelo crítico Guy Brett.5 de setembro de 1978 - São PauloJá há dois anos exilado no Brasil, Ferrari faz sua primeira individual brasileira, na Pinacoteca. Participa, ainda, do Panorama da Arte Brasileira do MAM.1988 - Duas linhasMira morre em 24 de julho. Ferrari, que vivia no Brasil, havia acabado de apresentar em Buenos Aires a polêmica série Releituras da Bíblia.

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