De fato, do começo ao fim o texto é lúdico e imprevisto, transgredindo a "tirania" de uma só voz ou um só estilo. Na obra de Joyce nenhum episódio (não convém usar a palavra capítulo, não empregada pelo autor) é igual a outro. Essa sucessão de estilos díspares é um procedimento inédito na história do romance moderno. Depois de Joyce, o procedimento se popularizou entre os autores mais "ousados", e continua sendo usado no século 21, elevado (ou rebaixado) à condição de linguagem "pós-moderna".
T.S. Eliot, um ano após a publicação de Ulysses, afirmou que o romance terminara com Gustave Flaubert e Henry James. Insatisfeito com essa forma narrativa, que parecia esgotada, o irlandês James Joyce teria buscado um novo método de composição, um método no qual o paralelo entre a modernidade e a antiguidade teria grande importância. Sabe-se, porém, que Joyce extrapolou o "método mítico", indo muito além da estrutura homérica que pretendia seguir, a qual visava, segundo Eliot, a "dar Forma e significado ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea".
O episódio 18, denominado Penélope, se desenrola na cama que Leopold Bloom e Marion, ou Molly, sua mulher, compartilham em Dublin, pouco antes do amanhecer. Eles têm uma filha adolescente, chamada Milly. O episódio corresponde à cena da Odisseia em que Penélope é informada ao despertar que Odisseus (Ulisses) retornou e derrotou os estrangeiros que almejavam ocupar o lugar dele no leito do casal. Sentenças sem pontuação constituem o longo monólogo da sra. Marion Bloom, talvez um dos textos mais sumarentos, mais repletos de líquidos vitais de toda a literatura.
Molly é uma mulher de 30 e poucos anos, preocupada com a barriga, que lhe parece estar ficando um pouco grande. Suas formas são generosas, e ela se tranquiliza afirmando que as magrinhas não estão mais na moda.
Talvez a palavra mais célebre pronunciada por Molly na madrugada do dia 17 de junho, ao nascer do sol, seja "Yes". É a primeira palavra que ela diz, e também a última, mas, neste caso, as noções de começo e fim se confundem e se anulam. Curiosamente, numa primeira versão desse monólogo, que circulou antes da publicação do livro, não havia o "Yes" final, o qual Jacques Derrida denominou de inesgotável "sim" da fala feminina. O fecho original dizia: "e sim eu disse sim eu quero". Porém, o tradutor francês, Jacques Benoist-Méchin, em conversa com Joyce, considerou o "I Will" difícil de passar para o seu idioma e acrescentou um "oui" final. Joyce, depois de discutir com ele acrescentou definitivamente um "Yes" ao seu próprio texto. Molly, desde então, abandonou o autoritário "eu quero" e nos endereça o "sim".
SÉRGIO MEDEIROS É TRADUTOR E POETA, AUTOR DE VEGETAL SEX (UNO PRESS/UNIVERSITY OF NEW ORLEANS PRESS) E TOTENS (ILUMINURAS, NO PRELO). COORGANZIOU E COTRADUZIU DE SANTOS E SÁBIOS (ILUMINURAS), DE JAMES JOYCE