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A solidão vista por Amós Oz em 'Entre Amigos'

Escritor israelense descreve experiência em kibutz em seu novo livro

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Não é esta a primeira vez que o escritor israelense Amós Oz se debruça sobre a vida num kibutz israelense. Seu primeiro livro de contos, Onde os Chacais Uivam, publicado há 47 anos, já falava das tensas relações entre pessoas que experimentaram viver numa comunidade rural. A diferença é que no novo livro, Entre Amigos, nas livrarias a partir de segunda-feira, Oz não conta histórias num registro trágico como o do livro anterior (uma delas sobre um grupo de judeus num kibutz que lincha nômades suspeitos de roubo). Nas oito histórias de Entre Amigos, o foco recai sobre dramas individuais , do jardineiro baixinho e pessimista da primeira, O Rei da Noruega, à última, Esperanto, sobre um idealista sobrevivente do Holocausto. Sofrendo de uma doença respiratória terminal, esse ex-professor de esperanto é um exemplo de moralidade, pacifista e em tudo diferente dos personagens do primeiro livro de Oz.

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Uma comuna não é certamente um ambiente onde as pessoas vivam em busca de isolamento, mas é justamente a solidão a marca característica dos personagens de Entre Amigos, como Zvi Provizor, o jardineiro da primeira história, ou o professor de esperanto Martin Vandenberg, que, mesmo à beira de um ataque apoplético, continua a trabalhar por fidelidade a seus princípios. O kibutz é o mesmo do primeiro livro, mas o foco muda em Entre Amigos. Se, em 1965, Oz olhava mais para o lado de fora do kibutz, ou seja, para os nômades árabes, neste seu mais recente livro ele volta seu olhar para o interior da comunidade de judeus, encontrando nela rostos familiares que conhece desde 1954, quando, aos 15 anos, trocou a vida acadêmica pelo trabalho físico num kibutz.

Sobre o livro e as adaptações de duas obras suas para o cinema, Amós Oz falou com o Estado pelo telefone, de Israel. O escritor, que, após o suicídio da mãe, viveu 30 anos no kibutz Hulda, descreve a utópica comunidade socialista como “a melhor universidade do mundo para entender a natureza humana”. No kibutz de Entre Amigos dividem espaço, entre outros personagens, o desiludido jardineiro Provizor e o carismático professor marxista David Dagan, que acredita no papel missionário dos judeus, todos à procura do toque mágico de um outro ser que o liberte da solidão atroz. O toque humaniza personagens como Provizor, que todos evitam por causa de sua síndrome de Cassandra, da monomania de relatar catástrofes e acidentes que estragam o dia de seus semelhantes.

Muitas vezes esse toque chega tarde demais. A morte é a companheira inseparável que ronda o fictício kibutz Ikhat de Entre Amigos. Amós Oz, que testemunhou a criação do Estado de Israel aos 10 anos, diz ser natural essa preocupação aos 74 anos, “quando se está mais perto da morte”. Mas não foi tanto por nostalgia que ele retomou o tema do kibutz, uma alternativa para o então adolescente descobrir a vida longe da repressão paterna. “Na verdade, eu nunca deixei o kibutz Hulda”, diz Oz, revelando que só saiu de lá por causa da asma de seu filho Daniel. “Em todo caso, mais do que revisitar o passado, me interessava investigar como uma comunidade criada para aproximar as pessoas colocava-as num a situação-limite, diante da solidão, da falta de amor, enfrentando suas perdas.”

As histórias interligadas de Entre Amigos não pretendem formar um panorama crítico da utopia socialista do kibutz, comunidade agrária cuja origem remonta a 1909, quando um grupo de judeus romenos passou a cultivar terras num vilarejo árabe da Palestina. No entanto, a narrativa revela mais sobre a natureza política do kibutz do que talvez desejasse Oz. “Não é um livro confessional, até mesmo porque, como disse, não deixei o kibutz por razões ideológicas, mas por causa da saúde de meu filho.” Embora definido pelo historiador Derek Penslar como um das marcas registradas do projeto sionista, o kibutz não alcança essa dimensão no livro de Oz, que parece simpatizar mais com os outsiders – como o Moshe Yashar de sua história Pai, um adolescente de 16 anos que pede permissão ao professor David Dagan para visitar o pai fora do kibutz, rejeitando a pregação socialista do professor. No lugar de Marx, prefere ler A Peste de Camus.

Oz, que se rebelou contra o pai, deixou Jerusalém e adotou esse sobrenome ao entrar no kibutz Hulda, garante que qualquer semelhança com pessoas reais será, de fato, mera coincidência. “Sou apenas um contador de histórias, não um sociólogo nem mesmo um profeta, como querem”, diz. Como escritor, observa, ele não se nega a participar do debate político sobre os territórios ocupados, mas jura que não pretendeu politizar a questão dos halutzim, ou seja, dos pioneiros que criaram as bases para o estabelecimento do Estado de Israel. Ficou surpreso ao saber que, simultaneamente ao lançamento de Entre Amigos, uma outra editora brasileira está publicando o polêmico livro A Invenção da Terra de Israel, do historiador Shlomo Sand (da extrema esquerda israelense), que provocou escândalo ao afirmar que não há entre os judeus nenhuma característica comum além da religião. “A herança genética do povo israelense é irrelevante”, observa, concluindo que “a identidade humana está na mente, não nos genes”.

O escritor não se mostra otimista sobre uma possível mudança na natureza humana que possa concretizar o sonho do jardim bíblico transformado no kibutz igualitário original da Palestina otomana. “Podemos mudar a sociedade, não a natureza humana”, justifica o escritor, que defende uma solução pacífica entre Israel e os palestinos, com o reconhecimento do Estado palestino na Cisjordânia. “Não compartilho das ideias de Shlomo Sand e, por discordar de historiadores como ele, escrevi Jews and Words com minha filha Fania, que é historiadora.”

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O livro, que acaba de ser lançado lá fora, defende que o judaísmo sobreviveu mais pelos textos do que pela fé. É a capacidade de inventar uma linguagem que fez o judaísmo avançar, conclui. Um exemplo disso: o verbo “rinocerizar”, que Oz inventou inspirado na peça O Rinoceronte, de Ionesco, crítica ao conformismo burguês. “Rinocerizar” é mudar de opinião para se ajustar à cabeça da maioria. É tudo o que o escritor se recusa a fazer.

Oz conhece seus limites. Com dois de seus livros sendo adaptados para o cinema (o autobiográfico Um Conto de Amor e Escuridão, por Natalie Portman, e A Caixa Preta, pela brasileira Monique Gardenberg), o escritor diz que não escreveria o roteiro de nenhum. “Seria como adaptar para o piano uma peça originalmente escrita para violino”, resume. “Adoro cinema, mas não sei escrever roteiros e forçaria o piano a se comportar como um violino."

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