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A sagração do amor de dois mitos da arte

Livro de pesquisadora se baseia em carta de Coco em segredo por 30 anos

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Filme se concentra entre 1913 e 1921 e adota licença poética

 

Robert Craft e Jocy de Oliveira conheceram Stravinsky quando este já era celebridade, compositor-chave do século 20, dono de imenso prestígio. Craft foi uma espécie de secretário, confidente, porta-voz e regente de suas obras, e conviveu com o russo desde seus 25 anos, em 1948, até a morte do compositor, em 1971; e Jocy foi apresentada a ele em 1960, quando tinha 24 anos, e trabalhou algumas vezes com Stravinsky naquela década, quando morou em Saint Louis, onde seu então marido Eleazar de Carvalho era o maestro titular da orquestra da cidade.Nenhum deles, portanto, viu Stravinsky no exato momento de sua afirmação na Europa como criador musical decisivo para a modernidade, na esfuziante Paris dos anos 1910/20. Talvez por isso, Craft tenha procurado negar a importância do caso amoroso entre Coco Chanel e Igor nos "crazy twenties" parisienses, quando, em 1976, uma entrevista reveladora da criadora do Chanel n.º 5 realizada em 1946 e mantida em segredo por três décadas deu a entender que ela foi mais importante para o compositor do que até então se imaginava.O musicólogo Richard Taruskin, emérito especialista em Stravinsky, afirma que "o caso foi bem mais importante para Stravinsky do que para Chanel, que vivia colecionando russos". A pesquisadora norte-americana Mary E. Davis, da Universidade de Case Western Reserve, em Cleveland, prestou atenção na dica e publicou o resultado, em 2007, mesmo ano em que se iniciaram as filmagens de Coco & Igor, ora em cartaz nos cinemas, no livro Classic Chic - Music, Fashion and Modernism (Ed. Universidade da Califórnia). Ali, ela dava nome aos bois. Chamou a atenção para os mesmos adjetivos aplicados a ambos. Tanto a moda concebida por Chanel quanto a música de Stravinsky recebiam, nas críticas especializadas publicadas nos primeiros anos 20, adjetivos comuns ("pureza, clareza, simplicidade, precisão"). Ou seja: depois do escandaloso début da fortemente polirrítmica e inovadora Sagração da Primavera em 1913, composta para os Balés Russos de Diaghilev e Nijinsky, Stravinsky de repente começou a praticar uma música com cheiro de passado, mais acessível ao grande público. Era o neoclassicismo - posição estética que teria então sido parida na cama de Coco Chanel. Enquanto manteve o caso e morou com a família na belíssima mansão de Coco nos arredores de Paris, entre 1920 e 1921, ele compôs Sinfonias para instrumentos de sopro em memória de Claude Debussy e Os Cinco Dedos - os pontapés iniciais de um longo e fértil período neoclássico. Mas Igor também foi decisivo para Coco. Foi durante o affair que ela concebeu e lançou seu maior sucesso, o perfume Chanel n.º 5 (1921).Centrado nos oito anos entre a primeira apresentação da Sagração, em 1913, e 1921, ano do rompimento, o ótimo filme - com uma formidável sequência inicial da estreia da Sagração, 20 minutos imperdíveis - adota uma licença poética pouco compatível com a realidade histórica: dá a impressão de que o caso se estendeu por todo esse período. É verdade que Coco Chanel esteve na plateia da turbulenta estreia da Sagração; mas eles só foram apresentados em 1920, por um amigo comum, no hotel onde se hospedava o "capo" dos balés russos, Serge Diaghilev. Este atravessava um mau pedaço - manteve a trupe na França desde 1908 como divulgadora oficial das artes russas sustentadas pelo czar; com a Revolução de outubro de 1917 ficou financeiramente órfão. Buscava outros mecenas, quando surgiu a já poderosa estilista. Ela, que gostara da Sagração e colecionava russos, como diz Taruskin, doou uma fortuna - 200.000 francos - para viabilizar a remontagem da Sagração (chegou a desenhar alguns figurinos da coreografia). Montou também o restaurante Le Chateau Basque para o cunhado do compositor. Segundo Mary Davis, Stravinsky queria mesmo ficar com Coco. Foi ela que o dispensou. Ele, então, trocou Catherine, sua mulher desde 1905, por Vera Sudeikina, com quem permaneceria até o fim da vida. E embarcou na onda neoclássica. A musicóloga norte-americana publicou, também em 2007, um perfil sintético de Erik Satie (Ed. Reaktion, Londres) onde atribui ao autor das Gymnopédies a primazia na adoção da estética neoclássica em música. Stravinsky, que adorava Satie, teria sido apenas o segundo a seguir o neoclassicismo - e não lançador da nova moda, como normalmente é considerado. Em setembro, Mary Davis lança outro livro entrecruzando música & moda, Ballets Russes Style: Diaghilev"s Dancers and Paris Fashion, no qual examina em minúcias como a trupe russa teve papel decisivo na área de formação de gosto e tendências na arte e na música modernas tanto quanto na alta-costura. Ao que parece, nunca houve tanto ti-ti-ti de agulhas, tesouras, batutas e pentagramas como na Paris do início do século passado.

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