A refinada apresentação do Quarteto Ebène

Jovens do grupo conseguiram o milagre de formar um só 'instrumento'

PUBLICIDADE

Por João Marco Coelho
Atualização:
 Foto: divulgação

Quando ouviu em 1772 os seis quartetos opus 20 de Haydn em suas andanças pela Europa, o inglês Charles Burney anotou que parte da plateia estranhou "a mistura de seriedade com comicidade". Ora, esta é justamente uma das maiores qualidades do compositor, no momento em que ele fixava o gênero do quarteto de cordas, nascido como divertimento e virando coisa seria sem esquecer as raízes de entretenimento. A refinadíssima execução do Quarteto Ebène dia 17 na Sala São Paulo, dentro da temporada 2016 da Sociedade de Cultura Artística, jogou com esta alquimia na medida exata. Fraseado perfeito, dinâmicas voluntariamente estendidas de modo a soar melhor numa sala grande. Os jovens Ebène conseguiram o milagre de formar um só "instrumento" ao mesmo tempo em que cada um deles, ajudado pela escrita de Haydn, dizia a que veio. As críticas passam ligeiras pelos quartetos de Haydn, normalmente servidos como aperitivos os pratos principais, um Beethoven ou um moderno. Os Ebène fizeram justiça a Haydn - ele é o pai. Na sequência, o único quarteto de Claude Debussy, escrito 120 anos depois. Obra-prima de juventude, na qual ele segue seu instinto e sua imaginação. Põe pra fora o que deglutira antropofagicamente na Exposição Universal de 1889, quando se encantou com os sons não-europeus e se apaixonou pelo gamelão javanês. Nos quatro movimentos pulsa o ar descompromissado de gourmet degustando timbres (os pizzicati encantadores do segundo movimento, as cordas "em surdina" no terceiro, um lied mascarado). De novo, os Ebène foram irretocáveis. Faltava o Himalaia a que eles se propuseram: interpretar a primeira versão do quarteto no. 13, opus 130, com a Grande Fuga, depois substituída por um inocente Allegro (Beethoven concordou com o editor Artaria de que o final original era pesado demais). Parece mais correto executar o opus 130 com a prodigiosa Fuga, já que os cinco movimentos iniciais conduzem a ela - e não a um finale convencional. A obra soa selvagem, indomável, arisca. E tecnicamente dificílima. O detalhe mais impressionante do formidável concerto dos Ebène foi sua cameleônica capacidade de se metamorfosearem estilisticamente. A cada obra, tiravam a pele anterior e assumiam nova identidade. Instrumentistas superiores, abraçaram com igual entusiasmo e finesse ora o sério-cômico de Haydn, ora a incessante curiosidade timbrística de Debussy - e, no clímax, a épica odisseia de Beethoven. Cá entre nós, parecida com a inacreditável saga do caçador no filme "O Regresso" que sobreviveu à luta com um urso. Dificílimo pensar que Beethoven, completamente surdo, empreendeu tão perigoso itinerário em seu opus 130 de olhos no futuro, sinalizando o que seria a música do século 20. COTAÇÃO: EXCELENTE

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.