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A possibilidade de narrar e de existir

Por ALCIDES VILLAÇA É PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Atualização:

O que um leitor deve a um escritor é a compreensão da escritura. O afeto pode tê-lo conquistado desde o início e chegado à veneração, mas a compreensão é o eixo ativo, é o compromisso de qualificar o olhar mediante o distanciamento que acaba por levar à intimidade mesma da obra. Afastar-se, para entender as razões da proximidade. Um dos primeiros intentos a que me desafia a ficção de Clarice Lispector é o de alcançar uma sinceridade de leitura espelhada na ansiedade verdadeira e permanente da escritura. Mas a sinceridade, em arte, é imponderável, já sugeriu mestre Carpeaux, que também propunha, para além da admiração, que reconhecêssemos em toda manifestação artística a formulação de um problema. A vitalidade singular da literatura de Clarice Lispector (para não falar da pessoa mesma) tem como efeito de linguagem uma espécie de sucção sobre os leitores, que não raro deixam de ser apenas leitores para se converterem em cúmplices de um fenômeno. São os claricianos, tão ou mais convictos que os machadianos quanto à genialidade absoluta da autoria. Os textos de Clarice vivem da relação entre extremos, na qual um descortino lúcido não se opõe a uma detecção nebulosa, antes a inclui, descartando assim o registro dos paradoxos banais. Avulta a realidade mesma de uma escritura que se recusa a ser espelho, pois antes de refletir qualquer coisa investiga a natureza da luz, o processamento da imagem, a consciência do olhar no ponto de partida. Na expressiva fortuna crítica dessa obra não faltam considerações, como a de Benedito Nunes, sobre "uma união íntima entre a existência e a linguagem". O que poderia ser uma polarização comum entre fato e expressão se converte na formulação íntegra de um desejo de revelação que se desnuda, se analisa e se repropõe o tempo todo. É na extremada comunhão entre o narrar da experiência e a experiência do narrar - operação sobre abismo - que se suspende o discurso de Clarice, como numa extraordinária flutuação de matéria. Já no romance de estreia, Perto do Coração Selvagem (1943), a autora lançou-se à perseguição não de eventos lineares ou de confissões "psicológicas", mas do sentido final das coisas ("ser feliz é para se conseguir o quê?"), sabendo que essa perseguição, feita de palavras, não pode deixar de morder-se a si mesma, se também quer dar conta da qualidade dos silêncios. Fica-se entre as percepções "por demais orgânicas para serem formuladas em pensamentos" e a palavra que, em vez de as expressar, converte-se ela própria em percepção. Assim, a história de Joana, menina e mulher, filha e esposa, costura-se descontinuamente por avanços e recuos no tempo, espaçando-se ainda nos segmentos da montagem reflexiva. Pergunta-se ela se haveria "um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem". O leitor se obrigará a reconhecer o comando exercido por esse movimento de autoconsciência, que inclui na peripécia mínima a ameaça turbulenta de algo essencial. A rigor, não há histórias de Joana: há estados de Joana, aproximados não pela justaposição horizontal de um enredo, mas pela verticalidade dos inquietos lances da busca - tão difusa quanto verdadeira - do sentido do ser, da vida, da morte. O leitor talvez se sinta amesquinhado diante de tal compromisso, firmado na ansiedade altiva do discurso; ou se sentirá empolgado pela incursão inesperada por seu próprio eu desconhecido? Com esse romance de estreia se abriu uma perspectiva ficcional e um trabalho de linguagem sem precedentes em nossa literatura. Dos vários romances que se seguiram, A Paixão Segundo G.H. (1964) é para muitos a culminância dos processos construtivos e expressivos de Perto do Coração Selvagem. Desenvolvido a partir de uma cena nuclear - a visão e o esmagamento de uma barata - e narrado em primeira pessoa, o relato tanto insiste na materialização mesma do episódio vivido como na sua repercussão subjetiva mais intensa, experimentada como conversão de uma personalidade em outra, das iniciais de alguém G. H. na personagem abismal que narra, transfigurada pelo peso místico, cultural e histórico da experiência de ver na barata, viva ou esmagada, uma espécie de verdade ancestral de que tudo deriva, identificando-se com ela essa nova mulher, aterrada, que se indaga: "O que me acontecia? Nunca saberei entender, mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de criar esse alguém que entenderá". Nessa formulação, Clarice está inteira: a resposta à pergunta é perguntar a pergunta de outro modo, de sorte que nem a afirmação nem a negação tenham a oportunidade de se instalar em definitivo. A técnica de retomar no início de um capítulo a última frase do anterior materializa o fio de uma costura. Num exaustivo processo de investigação do sentido, nada e ninguém se fixa como identidade. Entre a Morte ("tranquila ferocidade neutra do deserto") e o Amor (que ocorre "quando não se dá nome à identidade das coisas") perpetua-se o Movimento: "Minha busca cega e secreta". José Américo Motta Pessanha, leitor agudo e medusado por Clarice, viu nela "a força iconoclasta de um começo de filosofia". Acrescentemos que há também a força iconoclasta de um começo de religião, de mitologia, de poesia, começo de linguagem e de silêncio, tudo convocado para o que se poderia talvez definir como a construção da própria alma. Não por acaso, Clarice desejou que seu livro "fosse lido apenas por pessoas de alma já formada", conforme a nota inicial de A Paixão Segundo G.H. Lido, pois, como um processo de crua aprendizagem, a partir da epifania terrífica da morte e da eternidade da barata, o romance equilibra o cerne mesmo de uma experiência (tomada em seu sentido mais forte) e seu pleno desdobramento como paixão (sofrida, uma vez mais, como verbo que se quer carne). Encena-se mesmo, nesse romance, uma forte concorrência entre a investigação sagrada e a inclinação para uma Natureza absoluta. Tal embate assim se expressa: "Transcender é uma transgressão. Mas ficar dentro do que é, isso exige que eu não tenha medo!".Em meio aos romances iniciais, os contos de Clarice surgem como ponta aberta para um diálogo interno à obra. Penso sobretudo em Laços de Família (1960) - uma sucessão de contos extraordinários, em que a narração compõe com equilíbrio o peso vivo dos eventos e sua repercussão subjetiva no narrador, nas personagens e no leitor. Pouco se perde da verticalidade insistente e abusada das reflexões especulativas, agora aprofundada - diria mesmo, vitalizada - pelo eixo de gravidade de uma contingência humana. Um cachorro abandonado com profundo remorso, uma galinha provisoriamente poupada, um penoso aniversário familiar, o ressentimento e o ódio por um amor recusado - nessas e noutras experiências a linguagem arma-se para dar conta da luz e das sombras dos casos. Atraído pela matéria viva, o leitor não deixa de repercutir o halo de significação que dela transpira. Dissolve-se, assim creio, a falsa antinomia entre realismo e experimentalismo, nessa convergência entre a fatalidade de sermos todos uma história sensível enquanto também somos um pensamento sobre essa história. Digamos que o big close-up da barata em A Paixão Segundo G.H., a partir do qual se desenrola viva a reflexão especulativa, não é necessariamente mais iluminador que o alargamento de uma história, acolhida e problematizada no fundo comum das experiências cotidianas. O desfibramento de uma história, de qualquer história, e a insistência intensificada no peso especulativo de cada frase fará de Água Viva (1973) o limite último da antificção de Clarice: linguagem vazada em aforismos e fragmentos, voltados para a expressão de um it - a coisa clariciana, transcendência vazia que o leitor ou aceita em si mesma ou molda por sua conta e risco. Isso é o que é - arrisco eu a paródia, para expor uma tautologia radical do discurso que se anuncia a si mesmo. Mas o grito último e alto está em A Hora da Estrela (1977), romance em que autora, narrador interposto e personagem fazem uma história que também se historia, como a resumir as apostas essenciais de uma escritora que fez da linguagem uma personagem viva. A falta de ênfase das falas, o silêncio inocente, o pré-estado de qualquer culpa, o desejo obscuro e insondável tem um nome: Macabéa, a moça pobre atropelada pela estrela... de um automóvel Mercedes-Benz. Como a encarnar o início ainda inconsciente de nossa humanidade, a moça é um desafio para todas as palavras, e começa e acaba por não existir, constituindo o entrecho o desafio para qualquer narração. Encenam-se assim, nesse romance, como que inclusas uma na outra, a investigação da possibilidade de narrar e a da possibilidade de existir. Rodrigo e Macabéa são tão necessários um para o outro como a nossa necessidade de história - assumida, em desafio, como sucessão significativa de experiências e como desígnio da escritura que se faz espelho de si mesma: desafio que prossegue, creio, para a arte do nosso tempo.

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