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A polícia não sabia quem estava prendendo

Mario Lago, autor de Reminicências do Sol Quadrado foi preso em 1932, 37, 48, 49, 64 e ainda em 68. Em todo esse tempo, sempre mostrou o ridículo daqueles que o meteram atrás das grades

Por Agencia Estado
Atualização:

Lançado originalmente em 1964, Reminiscências do Sol Quadrado ganhou uma nova versão em 1979, quando o País era outro: a abertura começava a virar realidade, o regime militar demonstrava que seus últimos dias, ou pelos menos seus últimos negros dias, estavam chegando ao fim e o futuro parecia ser, se não radiante, pelo menos mais feliz. O mundo mudava tanto que os pais não se assustavam mais quando as crianças, intrigadas com as pichações em São Paulo, perguntavam o que era comunismo. A questão que mais constrangia voltava a ser "de onde vêm os bebês?" Restabelecia-se a ordem natural das coisas. Isso tudo torna, é verdade, datado o relato autobiográfico dos dois meses de detenção que Mário Lago viveu em 1964 após a queda de João Goulart - tanto quanto a tanga de crochê que Fernando Gabeira usou ao retornar do exílio. Ocorre que não há nada mais arcaico (ou moderno, modernista) do que desclassificar algo apenas por ser "datado". Algumas obras só ganham quando seus contextos se definem. Há um bom exemplo no cinema: Que Bom Te Ver Viva (1988), de Lúcia Murat, uma obra datada, sim, mas que só melhora quanto mais claro fica que nasceu de um trabalho de denúncia e recuperação da violência do regime militar feitas num momento específico - no caso, nos primeiros anos da Nova República. Reminiscências do Sol Quadrado ajudou a desmontar o sentido do regime militar. E Mário Lago opera essa desconstrução com um humor impagável. "Eu também castigo minhas musiquinhas, sabe?, e se o senhor não se incomodar de ouvir..." A frase é do carcereiro, e Lago sabia que a regra é escutar o sambista 40 vezes se for necessário, para garantir algum bem-estar aos colegas presos. Lago também estava disposto a mostrar que não havia sentido nenhum nas prisões de supostos "conspiradores" comunistas. Um dos presos não conseguia distinguir a figura de Carlos Lacerda, então governador do Rio que apoiava a tomada do poder pelos militares, de Leonel Brizola. Um detido é pego passando uma mensagem "criptografada". Chamado a explicar o sentido do bilhete, conta que ele trazia apenas o segredo do cofre de sua empresa, para a mulher o abrir. A suspeita só desaparece quando a polícia, por sugestão do detido, testa a senha e abre o tal cofre. Com companheiros de cela nada engajados, o velho comunista nem sequer sonhava em organizar uma greve de fome em apoio a representantes do governo chinês que, apesar de contarem com imunidade diplomática, também foram detidos. O autor dessas datadas reminiscências foi preso em 1932, 37, 48, 49, 64 e ainda em 68. Em todo esse tempo, sempre mostrou o ridículo daqueles que o meteram atrás das grades. A ausência de rancor (sentimento que seria plenamente justificável, diga-se) em seus textos e lembranças é a prova concreta de que Lago sabe que quem ri tranqüilo ri melhor.

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