A personagem do fim

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Por Miltonm Hatoum
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Numa tarde do último verão, quando passava diante de uma livraria, fui atraído pelo título de um livrinho exposto na vitrine. Não era um romance, e sim uma novela de oitenta páginas, e mais quatro ou cinco em branco para encorpar o volume, que mal se equilibrava de pé. Ao ler a orelha, soube que era o primeiro livro do autor. Um livro de estreia dá ansiedade, que é irmã siamesa da insegurança ou do medo. Um escritor totalmente seguro não vive neste mundo, só pode ser uma personagem, um ser fictício. Soube também que S. era um sedutor de mocinhas que moravam num dos bairros mais ricos da cidade. A trama aludia a um sequestro de uma dessas ninfas grã-finas, e o que vinha em seguida era um mistério que o autor anônimo da orelha não revelava. A novela era a história desse mistério. Folheei e li alguns trechos do livrinho, e logo percebi a linguagem sóbria do narrador: frases longas que alternavam com poucas frases breves, ambas habilmente construídas. O ritmo das frases me atraiu mais que o enredo. Mas faltava desvendar o mistério. Ou seja, faltava ler o texto de ficção. Comprei o livro e decidi lê-lo no café ao ar livre da livraria. Não havia ninguém por ali, o silêncio era um convite à leitura. O calor úmido da metrópole lembrava o calor não menos úmido e abafado da minha cidade. Pedi uma garrafa de água e acompanhei a sede carnal da personagem: um homem ávido por sexo, tão ávido que parecia desconhecer o amor, o erotismo e as carícias da noite. Claro que havia noites de orgasmo na narrativa, mas eram noites de cópula apressada, não de amor. Quase não havia descrições, os diálogos eram intencionalmente banais, como quase tudo nas noites daquele dom Juan sem eira nem beira, mas capaz de seduzir moças ricas. Uma delas parecia uma ninfa mimada, perdida em devaneios ambiciosos, como alguém que sonha com o futuro fútil de celebridades que aparecem nos piores programas de TV. Não foi difícil notar que a repetição de corpos e diálogos era uma estratégia narrativa. A novela não pode ser isso, pensei. E então na página quarenta surgiu o amor. Admirei essa simetria perfeita: a metade do texto era só perfídia, vaidade e cantadas baratas, a outra metade era uma verdadeira conquista amorosa. Mergulhei na rede quente dessa conquista, que às vezes beirava o patético, mas a voz do narrador insinuava que o patético é humano e às vezes vale a pena ser vivido. Li a novela em menos de duas horas e fiquei pensando na linguagem que me conduziu ao enredo e aos personagens, como um leitor que acaba de ler um bom livro. Ou um livro interessante, o que não é pouco nessa época de cabanas, amanheceres e crepúsculos. Estava entregue a esse devaneio quando alguém - uma mulher madura, alta e esbelta - sentou na cadeira à minha esquerda e cruzou as pernas. Notei que ela fixava o olhar no livro aberto entre minhas mãos. Eu ainda pensava na história, no destino da moça mimada e do dom Juan, ambos enredados pela paixão que, na literatura, é quase sempre sinônimo de desastre ou desencanto. Fechei o livro e olhei para a mulher que agora me encarava. Gostou?, ela disse, apontando a capa vermelha. Não é mal, murmurei.Então ela descruzou as pernas, levantou e sentou-se diante de mim. Podia sentir o cheiro da maquiagem, da máscara que cobria o rosto da mulher. Vi os olhos de egípcia tentando perfurar minha alma de leitor. Depois ela perguntou qual era o assunto do livro. Respondi que era difícil, senão impossível resumir o enredo de uma ficção. Mesmo assim, falei das duas partes simétricas da novela, citei algumas personagens da primeira metade do texto, resumi como pude o trançado de eventos, e enfatizei a história de amor que ocupa a parte final da ficção. Com uma voz forte, tensa, a mulher disse: O que você acabou de ler é uma grande mentira. Agora vou contar o verdadeiro destino da personagem. Qual das duas?, perguntei.A personagem do fim, ela disse. Não é essa personagem a que mais interessa ao leitor?Concordei com a cabeça. E antes que eu dissesse alguma coisa, a mulher começou a contar um episódio de sua vida.

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