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A pena de sair cedo da festa

Christopher Hitchens começou a escrever seu livro de memórias Hitch-22 com uma nota de sinistra diversão ao se descobrir descrito numa publicação da British National Portrait Gallery como "o falecido Christopher Hitchens". Ele escreveu, "Aí está, pois, em frias letras impressas, a frase seca e despojada que um dia se tornará uma verdade insofismável."

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Por Redação
Atualização:

Em 8 de junho de 2010, vários dias depois de seu livro de memórias ser publicado, ele acordou em seu quarto de hotel em Nova York "sentindo como se estivesse realmente acorrentado ao meu próprio cadáver. A caverna toda de meu peito e tórax parecia ter sido escavada e depois enchida com cimento de secagem lenta". E assim começou uma odisseia de 18 meses pela "terra da doença" que culminou na sua morte de câncer esofágico em dezembro do ano passado, quando a frase seca e despojada que o havia levado a contemplar a própria mortalidade se tornou, insofismavelmente, verdadeira. Ele tinha 62 anos.

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Mortality é um volume fino - ou, para usar a mot que ele gostava de empregar, um feuilleton - formado pelos sete artigos que ele enviou "de Tumorville" à revista Vanity Fair. Os primeiros sete capítulos são, como virtualmente tudo que ele escreveu em sua longa e respeitável carreira, incisivos e brilhantes. Um capítulo oitavo e final consiste, como a nota do editor nos informa, de "rabiscos fragmentários" inacabados, que ele escreveu em seus dias terminais na Unidade de Terapia Intensiva do M.D. Anderson Cancer Center em Houston. Eles são vívidos, pungentes e assustadores - mensagens numa garrafa atirada do tombadilho de um navio afundando enquanto seu capitão, cambaleando em agonia e avançando através das névoas da morfina, luta para manter seus motores funcionando:

"Meus dois bens minha caneta e minha voz - e tinha de ser o esôfago. O tempo todo, enquanto queimava a vela nas duas pontas, estive 'errando pela arena da indisposição' e agora 'um pequeno tumor vulgar' estava evidente. Esse estranho não pode querer tudo. Se ele me matar, ele morre, mas ele parece muito teimoso e determinado. Nenhuma ironia aqui, porém. É preciso tomar um cuidado absoluto para não cair na autocomiseração ou no egocentrismo."

""O estranho estava se entocando em mim enquanto eu escrevia as palavras jocosas sobre minha própria morte prematuramente anunciada."

"Se eu me converter é porque é melhor que morra um crente do que um ateu."

"Expressões ordinárias como 'prazo de validade'... Será que viverei mais que meu Amex? Minha carta de motorista? As pessoas dizem - vou estar na cidade na sexta-feira: você vai estar por aí? que pergunta!"

Fãs do filme Withnail and I reconhecerão "arena da indisposição" e "pequeno tumor vulgar". Leitores de seu clássico ateu de 2007, Deus Não É Grande, vão pegar o divertido pedaço "converter"; mais do que algumas poucas páginas de Mortality são dedicadas - nas circunstâncias - a uma defesa final, desafiadora e bem argumentada de seu não temor a Deus.

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Quanto às "palavras jocosas", elas são é claro do Capítulo 1 das memórias, cuja turnê promocional foi dramaticamente interrompida pelo toque-toque-toque da Ceifeira. Autocomiseração? Aqueles de seus amigos (eu fui um deles) que testemunharam sua garra durante todo seu horrível suplício atestarão que ele jamais sucumbiu a nada disso.

"À pergunta boba 'Por que eu?'', ele escreve, "o cosmos mal se dá o trabalho de devolver a resposta: Por que não?" Ele foi valente até o fim, um paradigma da fleuma britânica. Ele se tornou cidadão americano em 2007, mas a música de fundo sempre foi '"H. M. S. Pinafore: "Ele continua sendo um homem inglês (ênfase minha).

Mortality vem com um excelente prefácio de seu antigo editor de Vanity Fair e amigo Graydon Carter, que escreveu sobre o "destemor malicioso", a "grande turbina mental" de Christopher, e "sua marca sociável, mas imprevisível de anarquia que tocou seriamente rapazes na faixa dos 20 e 30 e poucos anos tal como Hunter S. Thompson fizera uma geração antes... Ele não se importava de pousar fora do casulo aconchegante da sabedoria liberal convencional".

A devota mulher de Christopher, Carol Blue, contribui com - eu já estourei minha cota de "pungente" - um posfácio profundamente comovente em que se recorda dos "jantares de oito horas" que eles davam em seu apartamento em Washington, quando, após consumir bebida suficiente para apagar toda a população da capital nacional, Christopher se levantava e fazia recitações impecáveis de 20 minutos de poesia, polêmicas e piadas, culminando com "Como é bom sermos nós". A verdade dessa declaração era evidente para todos que tiveram a sorte de estar presente nessas festas deslumbrantes. Era uma felicidade estar vivo e na sua companhia naquelas altas horas, embora as manhãs seguintes fossem, com frequência, um pouco menos felizes.

"Para mim", ele escreve em Mortality, "lembrar de amizades é lembrar daquelas conversas que pareciam um pecado interromper: aquelas que tornavam trivial o sacrifício do dia seguinte." Em apoio a isso, ele aduz vários versos da tradução de William Cory do poema de Calímaco sobre seu amado amigo Heráclito:

'Eles me contaram, Heráclito; me contaram que estavas morto.

Eles me trouxeram notícia amarga de ouvir, e lágrimas amargas de verter.

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Eu chorei quando me lembrei das tantas vezes que tu e eu

Havíamos cansado o sol de tanto falar, e o enviado pelo céu abaixo'."

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Christopher era um homem de dotes abundantes: erudição, argúcia, argumento, estilo de prosa, para não falar de uma constituição de titânio que, até ela o trair, no fim, lhe permitia produzir ensaios perfeitamente escritos, enquanto o resto de nós estava gemendo em ressacas épicas e procurando algum analgésico. Mas seu maior dom de todos pode ter sido o dom da amizade. Em seu serviço fúnebre em Nova York, 31 pessoas, virtualmente todas de nomes ilustres, se levantaram para falar em sua memória. Uma escolha foi da introdução que Christopher escreveu para a reedição em brochura de Hitch 22 quando estava gravemente enfermo:

"Outro elemento de minha memória - a importância estupenda de amor, amizade e solidariedade - ficou imensamente mais vívido para mim pela experiência recente. Não espero transmitir o efeito pleno dos abraços e confissões, mas posso, talvez, oferecer uma migalha de conselho. Se há alguém conhecido que possa se beneficiar de uma carta ou uma visita, não adie em hipótese nenhuma escrevê-la ou fazê-la. A diferença feita quase certamente será maior do que você calculava."

Um dos "rabiscos fragmentários" no último capítulo de Mortality é uma pincelada sobre o poema sobre a morte Aubade, de Philip Larkin:

"Larkin é bom no medo em Aubade, com uma reprovação implícita a Hume e Lucrécio por seu estoicismo. Bastante justo de certa maneira: ateus não deveriam oferecer consolo tampouco.''

Para uma versão mais completa dessa pensée terminal, procure seu ensaio sobre Larkin na sua coletânea Arguably: "Sem essa síntese de melancolia e angústia jamais poderíamos ter tido seu Aubade, uma meditação em vigília sobre extinção que propõe categoricamente um tenso e brilhante equilíbrio entre a filosofia estoica de Lucrécio e David Hume, e seu próprio franco terror do esquecimento". O ensaio termina com dois versos de outro poema de Larkin que poderiam servir de epitáfio ao próprio Christopher:

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"No quase-instinto quase verdadeiro:

O que sobreviverá de nós é amor."

Que partes discrepantes o compunham: a língua ferina, o coração terno.

Não há um "franco terror do esquecimento" em Mortality, mas há uma grande e aguda pena de ter de sair da festa cedo. Mas mesmo enquanto contemplava o abismo, seu humor mordaz não o desertou:

"A novidade de um diagnóstico de câncer maligno tem uma tendência a se desfazer paulatinamente. As coisas começam a aborrecer, a se tornar banais. Pode-se ficar bastante acostumado ao espectro do eterno Criado, como algum velho chato letal à espreita no corredor no fim da noite na esperança de dizer umas palavras. E eu não faço grande objeção a ele segurar o meu casaco daquela maneira característica, como se silenciosamente me lembrando de que já é hora de eu partir. Não, é o risinho silencioso que me arrasa."

Em sua primeira coletânea de ensaios, Prepared for the Worst (1988), ele citou Nadine Gordimer no sentido de que "uma pessoa séria deveria tentar escrever postumamente. Mas eu entendi que com isso ela quis dizer que se deveria produzir como se os constrangimentos usuais - de moda, comércio, autocensura, público e, talvez, especialmente, opinião intelectual - não operassem."

Ele se refere a isso em Arguably, cuja introdução escreveu em junho de 2011, das profundezas de Tumorville. Ele ainda estava caminhando mano a mano com o Criado, mas a essa altura estava pelo menos realista sobre as chances e sabia que as palavras que estava escrevendo poderiam ser publicadas postumamente. Nas circunstâncias, ele viveu o suficiente para ver Arguably ser aclamado pelo que é - inquestionavelmente, admirável. Que fecho. Que vida.

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Ele observou ali que alguns ensaios haviam sido escritos na "plena consciência de que poderiam ser meu último. Sóbrios num sentido, divertidos em outro, essa prática obviamente não pode ser aperfeiçoada".

Estar na companhia de Christopher raramente provocava a sobriedade, mas era sempre divertido. Mas é entristecedor e induz pena ler seu bravo e assustador relato de seu "ano de viver moribundo" nas garras do estranho que tivera êxito onde nenhum de seus oponentes intelectuais conseguira derrubá-lo.

Em seu posfácio, Carol conta uma anedota sobre sua filha, então com 2 anos de idade, passando um dia por um maribondo morto no chão. Ela rogou freneticamente para seus pais "fazê-lo pegar". Ao chegar ao fim do feuilleton de despedida de seu pai, o leitor provavelmente estará agudamente consciente do terrível sentimento de perda de Antonia./ TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

CHRISTOPHER BUCKLEY É ESCRITOR E PUBLICOU RECENTEMENTE THE EAT PUPPIES, DON'T THEY?

 

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