EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|A paciência da Jô

É preciso ter a paciência e a esperança do Jó bíblico para as agruras deste mundo

PUBLICIDADE

Atualização:

Jossylmara nasceu detestando seu nome. Soletrou a vida toda, enfrentou bullying na lista de chamada da escola e, por fim, dia após dia, chegou aos 23 anos sem conseguir responder por qual ódio especial à vida seus pais tinham lhe dado aquele nome. Assumiu-se Jô. Evitava a vogal aberta porque tinha ojeriza a uma vizinha que adotara o Jó como apelido.  Jô tinha crescido infeliz. Era uma insatisfação geral consigo e com o mundo. Tudo era desmedido para ela; ou era pouco (pouca renda, pouca estatura) ou muito (muito trem e ônibus, muita barriga). Seguiu a vida esperada e conseguiu concluir o Ensino Médio. Jô ouvira do pastor que ela precisava ter a paciência que seu nome indicava na Bíblia. Ela duvidou que houvesse alguma profetisa com o nome que a incomodava. “Deus dá e Deus tira, bendito seja o nome do senhor”, citou o líder religioso. Amarga, Jô voltava para casa retrucando: “de mim, só tirou”. A corte celeste está reunida. Satanás chegou sem convite diante do Todo Poderoso. Vangloriou-se dos seus muitos seguidores pelo mundo e anunciou novos planos de expansão de mercado. Deus mostrou-lhe um poço no qual se via Jô voltando para casa e reclamando. “Você consegue derrubar o mais elevado sonho e desgastar a fé mais robusta. Já imaginou tentar fazer feliz esta mulher?” O demônio gostava de desafios. Tinha ouvido no RH do Inferno que precisava sair “da caixinha”, que estava muito acomodado nos últimos 40 mil anos no mesmo lugar. Por tédio ou para irritar o Arcanjo Miguel que se postava ao lado do Pai, aceitou. Jô seria uma mulher feliz.  Resmungando como de hábito, Jô desceu do ônibus e, sem perceber, uma mão diabólica a empurrou na frente de um carro de luxo. Calma, queridas leitoras e estimados leitores. O diabo escreve errado por linhas retas. O carro bateu de leve na infeliz e ela caiu. O motorista era um jovem afortunado e, algo raro, recolheu a jovem e a levou ao hospital particular mais próximo. O pai do rapaz era candidato a prefeito e achou que o caso poderia ser um obstáculo à pretensão política. Quando Jô despertou no leito de um quarto privado, viu-se cercada de flores e afetos. Dr. Diogo, o zeloso candidato, tinha pedido que aproveitassem a inconsciência da jovem para restaurar os dentes que ele supunha quebrados no acidente. Na verdade, eram ruins antes, mas Jô foi aceitando sem questionar. A comida do hospital era balanceada e a paciente perdeu bastante peso com fisioterapia. Tinha saído do hospital com uma boca nova e com corpo muito melhor do que entrara. A família do político ofereceu uma pensão e uma viagem para ela descansar do incidente. Supunham que ela processaria a todos. Jô ia aceitando tudo, dizendo obrigados, sem saber que a mão do demônio estava ali, arranjando aquela ventura.  A viagem de Jô foi um impacto. Pela primeira vez ela pegou um avião e viu o mundo. A rotina da pobreza era um torpor e ela tinha despertado. Descobriu-se ávida de saber. Tinha sido aluna indolente. Era, agora, um prodígio de leitura. O peso perdido no hospital virou uma meta de vida. Treinava diariamente correndo. Os museus foram visitados com sofreguidão. Os cremes do hotel tinham revelado uma pele excelente que apenas se ressentia de um histórico de ausência de cuidados. Voltou ao Brasil dois meses depois. Era uma nova mulher. Como a situação política do segundo turno ainda não tinha se definido, a família do candidato ofereceu a ela um flat nos jardins e uma renda. Tudo era para calar a nova e radiosa boca da vítima. Para selar a felicidade de sua nova protégée, o Diabo inspirou aos advogados do candidato que a situação era delicada e a oferta deveria ser maior.  Meses após o empurrão diante do carro de luxo, ela era outra pessoa. Quem a visse selecionando um vinho nunca imaginaria, magra e sorridente, a moça infeliz de há pouco. O seu mentor infernal não cansava de contar vantagem nas reuniões da firma celeste. Na convenção do fim do ano, o Demônio apresentou o case de Jô com um power point maravilhoso. Foi aplaudido de pé até por Santo Antônio. Deus, CEO de tudo, sorria com certa ironia quase cansada.  A jovem explodia de felicidade. Desejava mais viagens. O corpo estava ótimo, porém poderia melhorar. Tinha conseguido um emprego ótimo. Já nem precisaria da mesada do candidato. Ao deitar a cabeça na fronha de mil fios, Jô começara a imaginar a vida passada. Insinuou-se uma dor: “e, se eu voltar a ser pobre e feia de novo?”. Afastou a ideia e tentou conciliar o sono... que não veio. Sabia o horror de ganhar o suficiente para chegar ao fim do mês. Trabalhar sem parar e obter o mínimo. Olhou no espelho do banheiro e viu seu novo rosto com dentes perfeitos e se lembrou de tudo. Aquilo era uma máscara. Seu rosto antigo continuava lá sob todos os disfarces. Foi a primeira vez que ela notou que a felicidade tinha sido rápida demais e que o risco de tudo retroceder era real. Chorou muito, como nunca tinha chorado. Ela infeliz antes do acidente, porém, sem muita consciência. Agora, era desesperadamente infeliz. Tinha experimentado tudo o que desejava e o medo explodira com a nova fase. Entrou em crise. Desenvolveu síndrome de pânico. Não conseguia mais sair à rua com medo de perder o que tinha conseguido. Temia a velha aparência que dormia sob a capa dourada da nova.  Jossylmara renasceu deprimida. Olhando, invisível, Satanás também estava intrigado. Ele ajudara em tudo. Sondava os anseios dela e atendia. Era bom nisto. Estava tão absorto na análise da depressão de Jô que não percebeu que Deus tinha vindo ao quarto. “Eles aceitam tudo, meu caro, menos a felicidade. Venho tentando desde o Éden...”. O Diabo concordou. Voltou a fazer o mal que era algo mais natural e bem aceito. Possuiu mais pessoas, afastou casais e levou muita gente ao vício. Era temido e todos achavam aquilo natural. Os irmãos de Jô a retiraram do quarto do flat em crítico estado depressivo. Ao retornar ao casebre, ela sorriu pela primeira vez em semanas. “Deus dá e Deus tira, bendito seja o nome do Senhor”, sussurrou. É preciso ter a paciência e a esperança do Jó bíblico para as agruras deste mundo... É HISTORIADOR E ESCRITOR, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS

Opinião por Leandro Karnal
Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.