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A nudez forte da verdade

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Por HUMBERTO WERNECK
Atualização:

Não posso dizer que fui apanhado de surpresa: o próprio Autran Dourado avisou que suas memórias, destiladas no espantoso Gaiola Aberta, tinham "tratamento ficcional". Em várias passagens, de fato, desconfiei que o romancista tomava liberdades com o acontecido. Não imaginava, porém, que a invenção predominasse no episódio que narrei aqui na semana passada, no qual murais do grande Guignard no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, teriam sido recobertos de tinta a óleo com o beneplácito do então governador Juscelino Kubitschek. Não fui só eu que me horrorizei. Caramba!, assustou-se o Antonio Cesar ao ler a crônica. Inacreditável!, reagiu a Ercília. "Estranho...", disse a Maria Lúcia: JK, notório protetor das artes e do próprio Guignard, por detrás de tamanho vandalismo? "Um restaurador, por favor!", rimou a Sylvia, endossando a sugestão que fiz, de um peeling para trazer de volta a arte de Guignard. O mesmo, aliás, teria feito Autran Dourado: em Gaiola Aberta, lançado em 2000, ele conta que escreveu artigo no Globo e carta à secretária da Cultura de Minas Gerais, nos anos 80. Só não explica (e até por isso é pena que já não esteja entre nós) por que, se testemunhou a barbaridade, esperou décadas para botar o bigodeira no trombone. Foi o Regis, lá de Belo Horizonte, quem me alertou para canoa furada em que embarquei. Ele me pôs em contato com uma especialista em restauração de obras de arte, a Maria Regina Reis Ramos, sua amiga Marrege: "Ela é uma das sócias da Oficina de Restauro, que reúne a melhor equipe de restauradores de Minas, talvez do Brasil" - responsável, recentemente, por nos haver restituído o esplendor original do painel Civilização Mineira, de Portinari. A fonte é fantasiosa, cravou a Maria Regina, e contou que "toda essa história está relatada pelo Grupo Oficina de Restauro em relatório técnico no Iepha", o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. Coordenadora da restauração dos elementos artísticos do Palácio da Liberdade, ela soube do livro de Autran logo no início dos trabalhos, em 2006. Sua equipe se empenhou - "imagina, achar um Guignard!" - na busca de um tesouro sufocado sob camadas de tinta. "Mas nada, nada, nem uma linha." "Aí", prossegue Maria Regina, "fomos atrás de todos os vivos que trabalharam no palácio naquela primeira metade dos anos 50 - e ninguém corroborou a história." Só se fez luz graças ao depoimento do pintor Pierre Santos, que trabalhou com Guignard: Juscelino convidou o artista para pintar a sala de jantar do palácio, e ele chegou a esboçar um desenho numa das paredes. Em seguida, porém, precisou ir ao Rio para uma cirurgia de lábio leporino - e, como demorasse a voltar, a primeira-dama, Sarah Kubitschek, que tinha pressa, mandou pintar a sala. Esclarecimento feito, fica para o cronista, mineiro não praticante, a recomendação para adotar o hábito que teriam seus coestaduanos de desconfiar desconfiando. Todo o cuidado terá ele, doravante, ao avaliar a verossimilhança em outras passagens de Gaiola Aberta. Aquelas, para começar, em que Autran Dourado fala de cenas de nudez que afirma ter presenciado no exercício das funções de assessor palaciano. Certa vez, conta, foi à casa do poeta Augusto Frederico Schmidt, encarregado por JK de dar má notícia àquele que era o ghost writer predileto do presidente de República. "Ele ergueu os braços para o alto, o robe de chambre caiu-lhe dos ombros", descreve Autran. "Os grandes olhos negros de Schmidt faiscavam, as mãos trêmulas, me pareceu que ele ia ter um acesso. Nu, grande e peludo, a situação que vivíamos era patética e ao mesmo tempo grotesca." O escritor veria balangandãs ainda mais ilustres. "A minha intimidade com JK ia a tal ponto que chegava a despachar com ele no banheiro, o que não me agradava muito", revela. "Me incomodava sobretudo ele ficar se ensaboando na banheira. (...) Uma vez, como ele mergulhasse o corpo na banheira, me deu uma aflição enorme, cuidando que ele ia estragar o relógio de ouro que tinha no pulso, não resisti e disse o relógio! Você é mesmo um capiau do sul de Minas, este relógio é à prova d'água, disse ele." Pena que para a comprovação desses dois casos a gente não possa contar com uma fera como a Maria Regina.

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