EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|A noite em que Marieta nos fez rir muito

Na Flipiri, a escritora divertiu a plateia e falou sobre seu livro ‘Naquele Tempo’

PUBLICIDADE

Atualização:

Para Fernanda Young, que se fez sem concessões e nos deixou rapidamente PIRENÓPOLIS, Goiás. O café da manhã na Pousada do Vigário é o momento em que todos se encontravam entre 8 e 9 da manhã, antes de partirem para as chamadas Itinerâncias. Ali circulavam ideias, falava-se de política e ensino, surgiam fofocas amenas, anedotas, lembranças de outras Flipiris, essa que nasceu da alma de Iris Borges apaixonada por formar leitores, por livros, feiras, edições. Enquanto tomávamos coalhada fresca, sucos de graviola, de abacaxi com hortelã, de cajuzinho do cerrado e água saborizada fazia-se um balanço dos encontros. Depois, todos partiam ao encontro de professores, alunos e mães. Muitas vezes, menos contávamos e mais ouvíamos as crianças a nos recontar. Muitos eram bons na narrativa, que futuro lhes é reservado? A Festa Literária de Pirenópolis ainda resiste, enquanto os “filtros culturais” vêm dizimando uma a uma. É uma árdua a batalha contra a ignorância. Trabalho heroico dos muitos que formam em Brasília a Casa dos Autores. 

PUBLICIDADE

Nas últimas semanas, passei da Flipelô (Festa Literária do Pelourinho), em Salvador, para a Semana Euclidiana em São José do Rio Pardo, segui para a Jornada Literária de Sobradinho, cidade-satélite construída dentro de uma fazenda do mesmo nome. Esse nome veio de um pássaro João de Barro, pássaro que construiu seu ninho em forma de sobradinho e assim ficou. Dali segui para Pirenópolis.

Naquela manhã de quinta-feira, todos partiram, ficou o silêncio das ruas tricentenárias. Histórica, a cidade foi do ouro há três séculos e dos hippies nos anos 70 e hoje é uma espécie de Campos do Jordão para os brasilienses. Envolvido em silêncio absoluto, caminho devagar pela Rua Nova, em busca do número 7, onde mora um ícone da cidade, Eliane Lage. Calma total na cidade de 25 mil habitantes, com seus quintais repletos de frutas e verde. Na casa de Eliane há uma campainha, mas preferi acionar a pequena aldrava de ferro, o som seco repercutiu lá dentro de uma casa que é da maior simplicidade do mundo, cômodos quase monacais, estantes cheias de livros. Nas portas e janelas não há chaves e sim tramelas (ou taramelas, depende da região) de madeira.

Eliane Lage, 91 anos, firme e rija, lúcida, fala mansa, prosa boa, vive há 40 anos nesta cidade de cachoeiras e pousadas, de Cavalhadas, Festas do Divino e dos “Mascarados”. A mulher, bela, sedutora, que foi a maior estrela da Vera Cruz nos anos 1950, atriz de Sinhá Moça, Angela, Terra É Sempre Terra, Ravina, cujo sobrenome ainda nos remete ao Parque Lage, no Rio de Janeiro, hoje vive só e serena. Tranquila, ainda dirige seu carro Volks, cujos vidros se abrem manualmente. “Para que necessito de um cheio de tecnologia, se este me leva a toda parte, igual aos outros?” Ela teve tudo, hoje tem a paz, os amigos, os livros, a sabedoria do bem envelhecer e degusta com prazer um vinho ao jantar. Fizemos juntos a abertura da 10.ª Flipiri e sua fala curta foi um texto poético, agradecendo à cidade que a acolheu. Igualmente lindo foi ouvir a fala de Marieta Souza Amaral, autora local, uma negra experiente e vivida, irônica e destemida, que ao falar de seu livro, Naquele Tempo, levou a plateia às gargalhadas com a sinceridade, a pouca cerimônia, as tiradas rápidas. 

Na manhã de quinta-feira conversamos, Eliane e eu, por horas sem nenhuma sombra de nostalgia. Cinema veio e se foi, a fama também, os livros são seus companheiros, principalmente os poemas completos de Miguel Torga (1907-1995) que ela acabou de trazer de Portugal.

Publicidade

Ela me presenteou com um curto livro dele, Portugal. Instagrans daquela terra. Passado e presente. Vou ler no avião na viagem de volta. Breve trecho: O girassol do mundo, aberto./ E o coração a vê-lo, sossegado./ Fresco e purificado/ O ar que se respira,/ Os acordes da lira/ Audíveis no silêncio do cenário./ A bem-aventurança sem mentira:/ Asas nos pés e o céu desnecessário. Torga, Eliane. Ele sem a conhecer, conheceu e previu.

Em 1985 estive em Portugal com Ricardo Ramos mais Adélia Prado, em sua primeira viagem à Europa, João Ubaldo Ribeiro, Nélida Piñon, Marly de Oliveira, Osvaldo França Junior. Torga nos recebeu em Coimbra. Fiquei surpreso quando nos contou que mexia em cada um de seus livros em novas edições. Assim, às vezes, era quase outro livro, a cada momento. Torga, pseudônimo de Adolfo Rocha, naquele encontro nos contou que tinha vivido no Brasil e sobreviveu carpindo café em uma fazenda de Minas Gerais. Aos 20 anos, regressou a sua terra. “Era um homem muito tímido”, conta Eliane. Uma amiga dela foi ao seu consultório no Porto. Ele clinicava, era otorrinolaringologista. Durante a consulta, a mulher viu que as estantes estavam repletas dos livros de Torga. Olhava para o médico e para as estantes. Ao escrever a receita, de cabeça baixa, ele acrescentou no canto do papel: “Eu sou Miguel Torga”. A amiga foi direto do consultório à farmácia, apanhou o medicamento e correu para uma livraria, de onde levou o que havia disponível do médico-escritor.  PS: Na Estação Clínicas, o Metrô montou uma exposição sobre minha vidinha. Vale uma visita.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.