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"A Morte de Um Crítico", por Luís Martins

Crônica foi publicada no Estado de São Paulo em 1960

Por Agencia Estado
Atualização:

Agora parece que a situação modificou-se um pouco, não sei. Mas no tempo em que eu fazia crítica de arte, a reação de uma parte do público em face da pintura moderna era muito engraçada. Na realidade, ninguém queria aprender, ou tentar compreender. Cada qual tinha a sua posição firmada "a priori". Fiz conferências, participei de mesas-redondas, escrevi livros, discuti com muita gente - mas duvido que tivesse convertido um único apreciador da arte acadêmica em adepto da arte moderna. Quem realmente se interessava por esta, não discutia, apenas procurava informar-se, de boa-fé. Espontaneamente, independentemente de qualquer exegese, já fizera a sua própria opção. Os outros assumiam uma atitude de falso interesse, mas certos de antemão da firmeza inabalável de suas convicções; de modo que a discussão se tornava uma coisa impossível, um penoso entrechoque de mal-entendidos, uma grotesca parada de disparates, uma conversa nas nuvens, sem qualquer ponto de apoio comum em que os dois interlocutores se pudessem firmar, como ponto de referência. Um dizia "pau", o outro respondia "pedra". Eu fugia dos "vernissages", como o diabo foge da cruz. Porque, nessas movimentadas reuniões, em geral lubrificadas a "martini doce" e salgadinhos, era fatal encontrar o pavoroso sorriso de uma senhora (quase sempre gorda), que me pegava pela manga do paletó e arrastava-me para diante de um quadro, a fim de me solicitar, com modulações hipócritas na voz: - O sr., que gosta da arte moderna, poderia me dizer o que é isto? - É um quadro, minha senhora - sacava eu, humildemente, da minha incompetência. É claro que esta explicação não a satisfazia; era infalível - e eu bem o sabia - que a martirizante senhora iria insistir em perguntar "O que significava", "o que representava", "o que queria dizer"... No começo, ingenuamente, eu procurava, de boa-fé, explicar o pouco que sabia. E, no meio do aperto, do calor, da confusão, das interrupções, dos encontrões com ou sem pedido de desculpas, iniciava pacientemente uma aula de b-a-bá estético, como se ensinasse a uma criança obtusa e recalcitrante as primeiras páginas da cartilha. Aos poucos, fui-me convencendo de que era inútil. A senhora não queria aprender, queria simplesmente discutir. E tudo aquilo impacientava-me, irritava-me, cansava-me, deprimia-me. Foi uma criança (cada vez me convenço mais de que os adultos têm muito a aprender com as crianças) quem me ensinou o método adequado a empregar. De modo que, já para o fim da minha carreira crítica, quando uma senhora, diante de um quadro abstrato, queria por força saber o que ele "representava" (mas não estava na cara que era abstrato?) - eu não tinha dúvidas; com a maior calma, o mais tranqüilo cinismo, dizia, absolutamente ao acaso, o primeiro absurdo que me vinha à cabeça: - É uma galinha. - Mas a galinha tem crista - objetava a senhora. - Esta é uma galinha sem crista. - Pois olhe, parece mais um caramujo mal desenhado. - Esta é uma galinha que se parece com um caramujo mal desenhado - respondia eu, impávido. - Mas como é que aqui no catálogo não fala em galinha? Diz que é composição... - Composição é o nome da galinha, minha senhora. Depois disto, só me cumpria abandonar a crítica de arte, o que fiz com muito prazer, para sempre. Agora posso ir aos "vernissages", que ninguém me pergunta nada.

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