
29 de março de 2014 | 02h09
Outro que se ocupou de prometer aos ricos o inferno foi Isidoro de Sevilha (cerca de 570-636), autor do primeiro best-seller latino, conforme classificação livre do historiador Bernard Ribemont (em Homens e Mulheres da Idade Média). Figura maior da Espanha visigoda, Isidoro, autor de Etimologias (mais de dez edições entre 1470 e 1530) e canonizado em 1598, foi recentemente escolhido como santo patrono dos especialistas em informática por seu conhecimento enciclopédico.
Isidoro considerava o amor ao dinheiro à frente dos pecados capitais, mas não condenava os ricos ou a riqueza. Um homem, observa Le Goff, pode ser ao mesmo tempo pobre e rico - e não há aí nenhuma alusão metafórica. Pobre, porque dependente de um rei, que podia doar terras a um homem - por combater os muçulmanos, por exemplo -, mas também tirar dele a última moeda. Poder e dinheiro não andavam juntos na era medieval, ao contrário do que acontece na modernidade.
O dinheiro é produto dessa modernidade, lembra o historiador. Na época medieval, ele estava menos presente do que no Império Romano. Entre os séculos 4.º e 12, a moeda perdeu importância e só lentamente voltou a ser revalorizada. O desenvolvimento urbano e o fortalecimento das ordens mendicantes deram um novo impulso ao dinheiro nessa sociedade dominada pela religião.
Assim como a fada diabólica Melusina, que assombrou a imaginação de todas as classes sociais, o dinheiro assustava o homem medieval. Era preciso construir catedrais góticas e a Igreja soube muito bem arrancar matéria-prima e mão de obra gratuita de seus fiéis. As catedrais custaram caro e, segundo Le Goff, junto às Cruzadas e à fragmentação monetária, sua construção foi uma das razões de a economia europeia não ter decolado na Idade Média, apesar do desenvolvimento do comércio exterior ao longo do século 13.
Os Estados nascentes desse século, que permitiam a príncipes e reis cunharem moedas e arrecadar impostos, ainda não concorriam com o poder da Santa Sé, que ameaçava os usurários com as chamas do inferno - e o único meio de escapar dele era restituir aquilo que ganhavam ao cobrar juros de outros infelizes cristãos. Le Goff admite que tem poucos documentos em mãos informando sobre a realidade dessas restituições. Outros historiadores acham que a religião não tinha lá tanta influência sobre o homem medieval.
O francês discorda. Lembra como religiosos (o monge francês Geoffrey de Vendôme, entre eles) compararam a hóstia sagrada a uma moeda de melhor cunhagem. Numa era que viu surgir os seguros e as letras de câmbio, não podia existir melhor lugar para um usurário do que a crença na existência do Purgatório, que favoreceu as doações em dinheiro à Igreja por meio das caixas de esmolas e das bacias das almas. A hóstia consagrada virou, de fato, uma moeda necessária à salvação, o que prova que o dinheiro não se emancipou dos valores da religião, conclui Le Goff.
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