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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|A melhor vingança

Atualização:

Viver bem é a melhor vingança. Vingança contra os invejosos, as adversidades e a mortalidade compulsória. Mas o que significa viver bem? Se dinheiro não é tudo, viver bem talvez seja lograrmos ser felizes do jeito que somos, com o que temos, com o que fazemos e com quem nos relacionamos. Já vi este provérbio atribuído à sabedoria popular espanhola e, com mais insistência, ao poeta galês do século 17 George Herbert. O veterano crítico e cronista de arte Calvin Tomkins o credita aos espanhóis num livro justamente intitulado Living Well is the Best Revenge, encantador perfil de um casal (Gerald-Sara Murphy) com vocação para a felicidade e muita grana. Publicado de forma resumida na revista The New Yorker em 1962 e ampliado em livro nove anos depois, o perfil foi logo traduzido entre nós, pelo poeta piauiense Hindemburgo Dobal, e lançado pela Artenova. Com apenas uma centena de páginas, acrescidas de um caderno de fotos, teve ótima receptividade mas faz tempo que só em sebos pode ser encontrado, ao contrário da edição original, ainda à venda, e desde o final do ano passado em novo formato, bancado pelo MoMA, com novas ilustrações e outra introdução de Tomkins, historiando sua gênese. Na capa, um quadro (Vespa e Pera) que Gerald pintou em 1929. No início do milênio, Amanda Vaill reconstituiu a vida do casal Murphy em Eram Todos Tão Jovens, traduzido pela Best Seller, também esgotado. Qual o melhor? Viver Bem é a Melhor Vingança me parece imbatível. Tomkins escreveu a mais enxuta e gratificante crônica sobre a Paris da Geração Perdida e seu mais glamouroso casal de expatriados, leitura complementar perfeita para A Moveable Feast (Paris é uma Festa), de Ernest Hemingway, ainda a principal obra de referência do período. Antecipando-se a eventuais candidatos a reeditá-la nestas bandas, a revista Serrote reservou 28 páginas de seu número 18, lançado esta semana pelo Instituto Moreira Salles, a dois de seus cinco capítulos: o de abertura (Duas Famílias) e o terceiro (Antibes). Gerald (1888-1964) e Sara (1883-1975) chegaram à França na mesma época em que uma leva de escritores americanos recém-saídos da 1ª Guerra Mundial (Hemingway, John Dos Passos) e atraída acima de tudo pelo câmbio favorável, estabeleceu-se às margens do Sena. Ao contrário de seus futuros amigos, comensais e, mesmo, protegidos, os Murphy eram ricos, pertenciam à aristocracia da Costa Leste, mas desprezavam sua esfera social, gente afetada e desinteressante, intolerada e mantida à distância pelo casal. Tinham genuína paixão pelas artes em geral, viviam cercados de pintores, músicos, intelectuais e escritores, aproveitaram, animaram e patrocinaram a efervescência cultural parisiense até o final da década de 20, quando os primeiros efeitos do crack da Bolsa de Nova York e a tuberculose do filho caçula os forçaram a voltar para a América. Seus apartamentos em Paris e a vila que remodelaram perto de Cap d'Antibes, na Riviera, abrigavam saraus permanentes cuja lista de habitués (Cole Porter, Hemingway, Fitzgerald & Zelda, Picasso, Fernand Léger, Gertrude Stein, Darius Milhaud, Cocteau, Diaghilev, Tristan Tzara, Blaise Cendrars, Erik Satie, até Rodolfo Valentino) mataria de inveja qualquer cerimonial da nobreza europeia. Raros casais tiveram uma vida tão plena de prazeres e criatividade. Fitzgerald, seu hóspede mais assíduo e, pelo descrito, também o mais desagradável, inspirou-se em Gerald e Sara para compor os protagonistas, Dick e Nicole Diver, de Suave é a Noite, escrito parcialmente e a duras penas num pied-à-terre dos Murphy na rua Vaugirard, ao lado do Jardim de Luxemburgo. Gerald não gostou do romance. Nem por isso brigou com o autor. Sua paciência com as porra-louquices de Fitzgerald desconhecia limites. Gerald pintava. Desenhou cenários para Stravinski, os bailados do russo Diaghilev e para o primeiro musical de Cole Porter, seu ex-colega universitário em Yale. Sua extática descoberta de Braque, Picasso, Gris e outros precursores do modernismo, no outono de 1921 ("Se isto é pintura, é isto o que eu quero fazer", comentou com Sara defronte a galeria Rosenberg, na rua de la Boétie), faz parte do terceiro capítulo do livro, não traduzido pela Serrote. Pintou 14 quadros entre 1922 e 1929, dos quais apenas sete sobreviveram e pertencem ao acervo do MoMA. São obras de grande porte, semiabstratas, próximas do factualismo irônico da Pop Art, explorando objetos corriqueiros (tampas de caixa de charuto, lâminas de barbear etc), "a única resposta realmente americana à nova pintura francesa do pós-guerra", na avaliação de Léger. Sara sobretudo encantava. Enfeitiçou Picasso, que a retratou mais de uma vez. Charmosa mas sem afetação, ia à praia com colares de pérolas lançados sobre os ombros, com a desculpa de lhes fazia bem pegar um solzinho. Qualquer semelhança com a passagem de Suave é a Noite em que Nicole Diver aparece sentada na areia, "com as costas morenas descendo das pérolas", não é mera coincidência. De todo modo, nem Nicole deve ser confundida com Sara, nem Gerald com Dick. A partir de determinado ponto do romance, Dick e Nicole mais se assemelham a Fitzgerald e Zelda. No outro capítulo que a Serrote deixou de fora, Fitzgerald e Zelda trocam Antibes por Paris. É o início da derrocada. Outubro de 1929, Zelda cada vez mais esquizofrênica, seu marido cada vez mais parecido com o autoindulgente Dick Diver. Desesperados com a doença de Patrick, o filho caçula, Gerald e Sara o levam para os Alpes suíços, onde alugam um chalé ao lado do sanatório, que ampliam e redecoram para receber bem os amigos de sempre. Dorothy Parker lá hospeda-se por seis meses. Para agradar ainda mais os convivas, Gerald compra um barzinho abandonado e o transforma num salão de danças, animado nas noites de sexta e sábado por uma bandinha importada de Munique. Em breve os Murphys voltariam para Nova York. O segundo filho do casal, Boath, morreria de meningite em 1935. Dois anos depois, Patrick sucumbiria à tuberculose. Gerald perdeu o gosto pela pintura, mas não pela vida, que ele e Sara continuaram levando, às margens de outro rio, o Hudson, com a elegância de sempre. Leiam o resto na Serrote.

Opinião por Sérgio Augusto
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