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A loucura usada em nome de deus

Crítica

Por Jefferson Del Rios
Atualização:

Como texto, A Religiosa, de Denis Diderot, reafirma o desencontro entre as estruturas religiosas e os movimentos da psique. O afeto real versus hierarquia se quisermos dar relevância a conceitos abstratos. É o caso, parece. Igrejas, seitas e "messias" não gostam disso. Seria fácil brandir exemplos atuais de pedofilias católicas, apedrejamentos islâmicos e extremismos judaicos. Vale mais, porém, dar atenção ao plano histórico geral. A obra de Diderot (1713- 1784) já tem séculos e ensina, de novo, que dogmas não são bons e pioram se entrelaçados a interesses de poder. No caso, a vítima é Suzanne, jovem francesa do século 16 encarcerada em conventos por conveniências familiares. Em cinema, há trabalhos célebres sobre fatos assemelhados, um dos mais impressionantes é o filme polonês Madre Joana dos Anjos, de Jerzy Kawalerowicz (agora em DVD). Há um outro, Os Demônios, de Ken Russel, excessivo no grotesco kitsch mas com a grande Vanessa Redgrave. Os motivos de cada cineasta são diferentes (o da Polônia era a ditadura stalinista), mas o consenso se faz na visão da tirania afetando o ser humano em sua individualidade. Como espetáculo, A Religiosa é outro esforço de expansão da linguagem cênica com a incorporação de artes visuais. No papel da vítima, a atriz Symone Strobel toma aparência de escultura em movimento enquanto a iluminação cria efeitos de pintura em claro-escuro. Há uma coincidência entre esta encenação da companhia Hospedaria, do Rio de Janeiro, criação de João Marcelo Pallottino, e Roberto Zucco, de Bernard Koltès do grupo Os Satyros, concepção de Rodolfo García Vázquez. Os protagonistas de um e outro enredo são pessoas desesperadas por liberdade, seja por motivo concreto (a noviça prisioneira) ou o delírio de um assassino (Zucco). Pallotino e Rodolfo reorganizaram o espaço convencional de representação e dominam esta "caixa negra" onde, para o encenador argentino Victor Garcia, "a vida não pode se desenvolver". É radical a tese de Victor, o visionário que, em 1970, reinventou a peça O Balcão, de Jean Genet, façanha histórica patrocinada por Ruth Escobar. Existem nuances, felizmente, e os talentosos jovens diretores operam através delas. Enquanto em Zucco a pequena sala é transformada em jogo de armar com as poltronas que se deslocam, em A Religiosa a janela do claustro é iluminada como cela de cadeia ou imaginados labirintos da mente. Anticlerical. Diderot, o enciclopedista francês que concedeu às artes a mesma atenção dispensada à filosofia, escreveu um melodrama anticlerical. Os exageros do gênero estão a serviço da denúncia das ilegalidades e preconceitos de classe praticados com o aval da religião. Com melancólica poesia, expõe a sexualidade que brota entre orações, solidão, penitências e crueldades beatas. O cuidadoso trabalho de dramaturgia de Maria da Luz conduz o original como um monólogo centrado na perseguição de uma mulher indefesa. Sobre este relevo dramático, o diretor Pallottino construiu sua representação evocando vitrais, esculturas ou espectros de Gustave Doré em A Divina Comédia. O efeito causa impacto, embora diminua as sutilezas interpretativas e a força de Symone Strobel. Numa estética experimental há perda quando não se pode usar o olhar, as mutações faciais ou a voz está alterada pelo microfone. Mesmo assim, houve um ganho estético. O clima se completa com trilha sonora pertinente, mas às vezes com excesso. Se houvesse algum silêncio, seria mais eloquente. A intenção final de oferecer beleza formal e protesto é nítida, e aí o grupo Hospedaria demonstra méritos e empenho. Há algo sempre respeitável na ânsia inovadora e seus desequilíbrios. A Religiosa tem a transcendência de Diderot e o apelo das experiências em andamento. A RELIGIOSASesc Pinheiros. Rua Paes Leme, 195, telefone 3095-9400. 6ª, 20 h; sáb., 20 h e 21h30; dom., 18 h e 19h30. R$ 16. Até 5/9.

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