PUBLICIDADE

A louca esquecida do sótão de Brontë

Personagem secundária da escritora britânica no clássico Jane Eyre protagoniza obra-prima da caribenha Jean Rhys

Por MANOELA SAWITZKI
Atualização:

MANOELA SAWITZKIE m 1847, a escritora inglesa Charlotte Brontë, sob o pseudônimo de Currer Bell, publicou o romance Jane Eyre. O drama fala de uma menina de ideias, órfã, maltratada primeiro pela tia, depois pelo sistema austero de um internato, personificação da Era Vitoriana, que acaba vivendo um amor improvável ao lado de Edward Rochester, homem rico e sombrio que a emprega. No início do século seguinte, ao ler Jane Eyre, uma caribenha chamada Ella Rees Williams (1890-1979) seria impactada não pela protagonista, mas por Bertha Antoniette Mason, a primeira esposa de Rochester - personagem insana e tão oculta no enredo quanto na casa onde acaba trancafiada. Mais tarde, entre 1927 e 1939, Williams adota o pseudônimo Jean Rhys e vê os próprios livros serem lançados. Durante as duas décadas seguintes, deixa de publicar, mas não de escrever. Até que, em 1966, ressurge com o romance Vasto Mar de Sargaços, laureado pela crítica como obra-prima. Rhys voltava trazendo consigo a louca esquecida por Brontë.Em casos como o de Jean Rhys, é difícil desembaraçar a escrita da vida do autor. Nascida em Dominica, nas Índias Ocidentais, em 1890, filha de pai branco galês, e mãe crioula de ascendência escocesa, a escritora mudou-se para Londres aos 16 anos. Trabalhou como modelo e corista, passou por três casamentos turbulentos, circulou por toda a Europa, sobretudo Paris, e tornou-se protegida e amante do modernista Ford Madox Ford. Alcoólatra, durante os anos em que se afastou do circuito literário chegou a ser presa, acusada de roubo. Sua produção, que inclui os romances Quartet (1930) e Good Morning, Midnight (1939), agrega muitas de suas experiências pessoais. Com Vasto Mar de Sargaços, recém-lançado no Brasil, não foi diferente.O assombro diante da ideia de uma mulher que enlouquece, trancafiada num sótão pelo próprio marido, fez com que a escritora elaborasse sua versão para a origem da personagem durante cerca de 20 anos. A Antoniette Mason de Rhys é uma menina de origem mista, nascida e criada na Jamaica e, como a autora, chamada de "barata branca" pelos nativos da ilha, e de "branca crioula", pelos colonizadores europeus mais abastados. Quando o Ato de Emancipação do Império Britânico é assinado, em 1837, a animosidade do povo, subjugado e empobrecido, se volta contra quem permanece. Diante do mau tempo, os brancos "fecham as fileiras" para se proteger. Mas Antoniette e sua família são excluídas.A mãe, Annette, uma estrangeira da Martinica, é deixada à mercê do próprio desespero depois da morte do marido e dá sinais de loucura. A criada negra Christophine, praticante do culto Obeah, que tem raiz comum com o Voodoo haitiano, cuida da menina, a cada dia mais esfarrapada e bonita. Apesar do isolamento da Fazenda Coulibri, lugar onde Antoniette nasceu, há olhos ameaçadores à espreita. "Godfrey dizia que nós não éramos justos. Um dia quando estava bêbado, ele me disse que estávamos todos condenados e que não adiantava rezar", lamenta a menina que já não se sente segura em parte alguma. É como se a terra, uma terra que ela ama, os quisesse expurgar como a um corpo estranho.A aparição do Sr. Mason, que se casa com a viúva, será a salvação e a ruína da família. Mais pela herança que recebe do padrasto que por sua beleza e magnetismo, Antoniette atrai o jovem pretendente inglês Edward Rochester. Esse homem que, depois de um lampejo de paixão que se confunde com fascínio pela condição exótica da jovem esposa, acaba trancafiando-a num sótão gelado, também é convocado por Rhys para prestar contas sobre seus atos.Dividida em três partes, a narrativa é construída por dois pontos de vista. Na primeira, a voz da protagonista fala da sua própria infância, até que a sanidade da mãe se esvai e a menina vive momentos mais pacíficos no interior de um convento. A parte dois traz um Rochester assombrado com a exuberância hostil da Jamaica. Sob sua perspectiva, inscreve-se o regresso da jovem esposa à Fazenda Coulibri para a lua de mel do casal, e os acontecimentos que se sucedem a uma chegada aparentemente feliz. À medida que o passado emerge, afastando os amantes, a voz de Antoniette retorna, numa costura feita com delicadeza pela autora. Na última e breve parte, é ela quem narra os tormentos do cativeiro na Inglaterra - lugar que, a certa altura da, Christophine questiona se realmente existe - até o último ato enlouquecido, seu único protagonismo na história de Charlotte Brontë.Jean Rhys construiu esse enredo com habilidade. Sua prosa é sensível e elegante, ainda que muitos trechos flertem perigosamente com o melodrama. A gênese da personagem que tanto fascinou a escritora diz respeito a um universo que conheceu de perto: o território do deslocamento, do choque entre culturas, onde o eurocentrismo é atritado pela potência inconveniente do "outro". Essa entidade díspar, aparentemente anulada pelo explorador, passa a atuar nas sombras, numa contenção perigosa que não tarda a rebentar.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.