PUBLICIDADE

A literatura como única pátria

Por Agencia Estado
Atualização:

Ao esmiuçar a vida do escritor alemão Thomas Mann, seu biógrafo Donald Prater optou por um livro linear, tradicional e com o maior número possível de informações - por exemplo, já na primeira linha, ele diz que Mann nasceu às 10h15 de um domingo. Talvez pela enorme quantidade de fatos que tinha em mãos sobre a vida do biografado, o autor parece ter decidido concentrar-se no próprio Mann, sem se estender muito na história de seus antepassados. Mesmo assim, ele nos fala um pouco, no começo do livro, sobre a mãe do escritor, a brasileira Júlia da Silva Mann. Júlia (cujo nome de solteira era Júlia da Silva Bruhns), deixou o Brasil aos 7 anos, depois que a mãe morreu, e foi viver em Lübeck, onde, aos 18, se casaria com o pai de Mann. Quando Thomas era menino, sua mãe adorava dar festas, inclusive bailes de máscara (reminiscências do carnaval?) e, morena e bonita, fazia enorme sucesso nos salões, sendo assediada por admiradores. Mas as referências a Júlia Mann não vão muito além disso. Se há pouco sobre os antepassados no livro Thomas Mann - Uma Biografia, que será lançado em outubro no Brasil, há, por outro lado, muito sobre os parentes colaterais e os descendentes, já que a família de Mann - cinco irmãos e seis filhos - foi parte importante de sua vida. De todos, talvez o mais presente na biografia seja seu irmão mais velho, Heinrich, com quem Mann manteve relação tumultuada, pontuada por disputas literárias e políticas. Também ele um escritor conceituado, Heinrich foi autor do romance Professor Unrat que, filmado em 1929 como O Anjo Azul, foi um sucesso mundial e lançou Marlene Dietrich ao estrelato. Mas Heinrich, embora considerado por alguns até mais talentoso do que Mann, jamais chegou ao pés do sucesso alcançado pelo irmão que, em 1929 (cinco anos depois de ter escrito A Montanha Mágica), receberia o Nobel de literatura. Desde muito jovens, os dois tiveram divergências políticas, Heinrich sendo mais radical do que Thomas e desprezando as frivolidades da vida burguesa. No período que antecedeu a 1.ª Guerra Mundial, por exemplo, os atritos foram muitos, porque Heinrich se engajou na causa republicana, enquanto o irmão continuava acreditando no regime monarquista. Mulherengo e passional, Heinrich era em tudo o contrário de Thomas, mais frio, meticuloso e com acentuadas tendências homossexuais. O homossexualismo de Mann, assunto recorrente no livro, é tratado por Prater com máxima elegância. Embora casado durante 50 anos com a mesma mulher, Mann teve várias paixões platônicas, todas por rapazes jovens, e até uma fixação homoerótica pelo próprio filho, Klaus (também homossexual), quando este era adolescente. Segundo Prater, Mann sentia "uma esmagadora atração pela beleza adolescente do rapaz, ao vê-lo tomando banho ou deitado nu em sua cama", o que explicaria algumas explosões de fúria que ele tinha na época, irritando-se, de forma exagerada, com o burburinho natural das crianças. "Tenho estado apaixonado por Klaus esses dias", escreveu Mann em seu diário, entre anotações sobre a intenção de escrever uma novela sobre a relação pai e filho. Embora tivesse reprimido suas tendências homossexuais por toda a vida, Mann sempre as revelou nos diários que, por ordem sua, teriam de permanecer lacrados em um cofre de banco até 20 anos após a sua morte (foram abertos em 75). Foi ali que Mann registrou a paixão que teve pelo colega de escola Armin Martens, sua atração pelo pintor Paul Ehrenberg e por Klaus Heuser, de 17 anos, ou mesmo a perturbação provocada pela visão de um jardineiro que remexia os canteiros de sua casa. Foi nesses diários, também, que o escritor, já quase no fim da vida, confessou estar novamente apaixonado, dessa vez por um garçom que o atendia no Hotel Dolder, em Munique. Em suas anotações, Mann dizia que a fama mundial não significava nada "se comparada a um único sorriso" do rapaz. E lamentava: "Mais três dias e nunca mais voltarei a vê-lo." A mulher de Mann, Katia, oito anos mais nova (que sobreviveria a ele por um quarto de século, só morrendo em 1980, com quase 100 anos), era indulgente com as tendências do marido e, segundo Prater, Mann "era grato a ela por compreender sua ambivalência". As paixões homossexuais de Mann, embora irrealizadas, estiveram presentes não só em seus diários, mas também na ficção, como é o caso da novela Morte em Veneza (transformada em filme por Luchino Visconti). Prater lembra que o personagem principal da história, o escritor Aschenbach, tinha muito do próprio Mann e que este, durante as férias de verão de 1911, no Grand Hôtel des Bains da Praia de Lido, em Veneza, de fato conhecera um rapaz polonês de extrema beleza, usando-o como modelo para compor o personagem Tadzio, pelo qual Aschenbach se apaixona. Assim como esse, Prater descreve diversos outros casos em que Mann se valeu de elementos da vida real em sua ficção. Por exemplo, a idéia para A Montanha Mágica, segundo o biógrafo, teria nascido em 1912 quando Katia, a mulher do escritor, foi internada num sanatório para tuberculosos em Davos, na Suíça. Na ocasião, Katia costumava escrever para Mann contando suas impressões sobre a vida naquele mundo segregado, a relação com médicos, enfermeiras e os outros pacientes, as excentricidades, as fugas organizadas e os códigos morais nem sempre rígidos. Da mesma forma, diversas histórias da família de Mann foram usadas na elaboração de seu primeiro grande sucesso, o romance Os Buddenbrooks (1901), narrando a decadência de uma família da burguesia alemã. Até velhas receitas culinárias que sua mãe guardava foram usadas por Mann para recriar o ambiente dos velhos tempos. Segundo Prater, o próprio Mann, ainda no começo da carreira, havia elogiado a frase de Nietzsche, segundo a qual "poetas e escritores são exploradores desavergonhados das próprias experiências". No caso de Mann, essa relação entre vida e arte chega a um paroxismo, já que ele parece ter deixado de viver para apenas ver. É como se tudo em sua vida escoasse para a literatura: suas experiências, seus sonhos e desejos sendo apenas matéria para a obra. Mann era um esteta, um "voyeur", assistindo à passagem da vida com os mesmos olhos com que olhava o corpo musculoso do jardineiro. Isso explicaria a maneira como reprimiu o próprio homossexualismo e até sua frieza diante das tragédias. Quando se preparava para sair em uma turnê literária, em 1949, Mann recebeu a notícia da morte do irmão mais novo, Viktor, e decidiu viajar assim mesmo. No meio da viagem, teve a notícia do suicídio do filho, Klaus, o mesmo por quem "se apaixonara" anos antes. Pois nem assim ele suspendeu as palestras. Chamado por seu biógrafo de frio, egocêntrico e vaidoso, Mann de tal forma se concentrava no dever - e seu dever era escrever - que parecia o tempo todo pairar acima da humanidade. Até no envolvimento político ele guardou um certo distanciamento. Ambigüidade - Embora se tenha tornado um símbolo da esquerda, perseguido nos Estados Unidos na época da guerra fria, Mann talvez fosse no fundo um ser apolítico, o que explicaria algumas de suas ambigüidades. "Para mim, é definitivo que não há nada mais repulsivo do que o envolvimento direto em questões políticas. Não posso, de forma alguma, encarar tal assunto como sendo minha missão", escreveu ele em 1932. Anos depois, quando já estava no exílio, demorou a fazer um pronunciamento oficial contra o nazismo, apesar das pressões da família, entre outras razões porque seus diários continuavam na Alemanha e ele ainda não achara um jeito de tirá-los de lá. O livro de Prater passa a impressão de que Mann se anulou para dedicar-se ao trabalho. Mesmo que o mundo explodisse à sua volta, ele mantinha sua rotina diária: acordava às 8 horas, passava as manhãs escrevendo, descansava um pouco na hora do almoço e dedicava as tardes à correspondência, aos artigos de jornal e a fazer anotações. À noite, após o jantar, gostava de ler em voz alta o que vinha escrevendo, para a família ou mesmo para eventuais visitas. E isso durante mais de 60 anos. Sua produção diária era pequena - uma página, uma página e meia, não mais do que isso -, porém constante. "A página nossa de cada dia, nos dai hoje", escreveu certa vez ao amigo Ernst Bertram. Não tendo sucumbido às paixões terrenas, levando uma vida regrada e sem excessos (bebia pouco, apenas um copo de cerveja no almoço e uma pequena dose de conhaque à noite e fumava quase nada), sem interesse em religião e tendo tido, por força dos acontecimentos, três nacionalidades (alemã, checa e americana), Mann viveu, em todos os setores da vida, uma espécie de auto-exílio. Sua única pátria foi a literatura.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.