A invisível melancolia da Istambul de Orhan Pamuk

Nobel de literatura traça a história afetiva de sua cidade no livro Istambul

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Por Agencia Estado
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Desde criança, o escritor turco Orhan Pamuk acreditava na existência de um duplo seu. Alguém muito parecido com ele e que vivia em uma casa parecida com a sua em Istambul. "Em alguns sonhos, eu recebia a aparição desse Orhan", conta Pamuk que, entre diversas explicações para o fato, credita uma característica comum aos habitantes de Istambul: uma invisível melancolia. Tais sensações são relatadas no livro Istambul - Memória e Cidade (408 págs., R$ 48), que a Companhia das Letras lança na quarta-feira, 25. Pamuk venceu o Prêmio Nobel de literatura do ano passado, transformando-se em uma celebridade da noite para o dia. Já era uma figura notória por suas convicções políticas - foi o primeiro autor do mundo muçulmano a condenar a fatwa (sentença de morte imposta pelo falecido aiatolá Khomeini ao escritor indiano Salman Rushdie, por "ofensas" a Maomé). Também dividiu a sociedade de seu país, ao denunciar em seus livros o genocídio armênio pelos otomanos (acusação que fizera também em uma entrevista na qual afirmou que a Turquia "tinha assassinado um milhão de armênios e 30 mil curdos" em 1915). Sua declaração foi considerada uma ofensa à identidade nacional, o que, na Turquia, é passível de prisão. Desde então, Pamuk é obrigado a viver uma relação de proximidade e distância com seu país e, especialmente, com sua cidade natal, Istambul, onde nasceu em 1952. "O destino de Istambul é meu destino - estou ligado a essa cidade porque foi ela quem fez de mim quem eu sou." Com isso, passou a ser alvo de uma série de ameaças até que, em fevereiro, foi obrigado a deixar Istambul e se transferir para Nova York, onde hoje vive e leciona teoria literária na Universidade de Colúmbia. "Ganhar o prêmio Nobel de literatura do ano passado aumentou os problemas da minha vida", comentou Nesta sexta, o escritor Orhan Pamuk, falando de Paris. "Claro que não me arrependo da escolha, foi uma honra inestimável, mas o Nobel não é capaz de fazer desaparecer as diferenças políticas que enfrento com meus inimigos na Turquia." O forte laço com a principal cidade da Turquia, marco geográfico que separa o Ocidente do Oriente molda a literatura de Pamuk. "Por baixo de sua história grandiosa, da sua pobreza viva, dos seus monumentos voltados para fora e das suas paisagens sublimes, os seus pobres ocultam a alma da cidade dentro de uma teia frágil", observa ele no livro Istambul - Memórias e Viagens. Os personagens, as ruas e os becos, os grandes e pequenos acontecimentos que definiram sua vida, nenhum detalhe pessoal escapou à escrita de Pamuk, cujo centro de tudo é justamente um edifício chamado Pamuk, construção que, no início da década de 50 abrigava toda a família do autor, espalhada em seus andares. Assim, circulando pelos corredores do edifício, a memória do escritor busca entender coisas aparentemente inexplicáveis, como as ausências do pai, as fotografias espalhadas pelo avô (muitas, aliás, figuram no livro) e o infalível piano que todos têm nas casas, mas que nunca tocam. Fixar raiz é essencial para a sobrevivência, comenta Pamuk que, à medida que envelhece, começa a se impregnar da tristeza coletiva que assombra a cidade e é inerente à sua história. "Tenho apartamento em Nova York e, no momento, estou em Paris, mas sempre passo uma temporada em minha cidade", comenta ele, que se prepara para figurar no júri oficial do Festival de Cannes. Como o senhor descreve as circunstâncias do livro, uma mistura de autobiografia com ensaio? Escrevi muito sobre Istambul, especialmente para a imprensa internacional. Ao preparar o livro, porém, quando pensava apenas em reunir os artigos, percebi que seria autobiográfico. Eu me lembrei de Walter Benjamin, que dizia existirem dois tipos de livros biográficos sobre cidades: aqueles escritos por forasteiros, que resultaram em textos exóticos, e os produzidos por habitantes do local, que tendem ser autobiográficos. Assim, pensando nisso, tentei uma mistura, ou seja, uma parte do livro oferece uma visão da beleza de Istambul e a outra, mais intimista, minha relação com a cidade até o início de minha maturidade. Poderíamos dizer que o livro é um mapa onírico e à la Joyce de Istambul? Não, eu diria que é um mapa pessoal da cidade. Um mapa tradicional cobre todos os pontos de um local, já um mapa pessoal oferece apenas as sensações despertados por alguns lugares. O que me fez lembrar de Baudelaire que, ao tratar da beleza das pinturas sobre as cidades, desenvolveu a teoria que o significado dessa beleza provém de sentimentos muito pessoais. Assim, me perguntei qual seria a melhor paisagem de Istambul, que ficou definida quando tratei da melancolia que permeia a rotina dos habitantes dessa cidade. Em sua opinião, o que difere nostalgia de memória? Uma boa pergunta. Sou um filósofo da memória, utilizo meu passado em crônicas, mas não sou nostálgico. Creio que a nostalgia implica uma urgência em voltar ao passado. No meu livro, o que pretendo é entender a memória e descobrir de que forma nos transformamos. Ao escrever, procurei evitar a nostalgia e apresentar uma memória filosófica. Não pretendo voltar à Istambul da minha meninice, que é mais pobre, menos colorida e mais triste que hoje. Claro que são as memórias que nos transformam no que somos atualmente, mas não pretendi, no livro, retornar a esse passado. Em relação à expressão "alma melancólica" que marca boa parte do livro, como você descreveria Istambul a uma pessoa que nunca esteve lá? Foi o que tentei fazer no livro. Não mudaria nenhum texto ou fotografia. Apresentaria uma cidade que, depois do colapso do Império Otomano, foi praticamente esquecida pelo mundo. Para mim, ela sempre foi uma cidade dominada pela ruína e pela melancolia de fim de império. Mas, tendo vivido lá praticamente toda a minha vida, posso dizer que conheço Istambul como meu próprio corpo. Não sei dizer se a amo ou a odeio: é parte de mim mesmo. Portanto, não seria uma descrição fria, profissional, e sim a Istambul que marcou meu coração. Como as fotografias contribuem para o livro? Claro que elas estão repletas de informação, exceto pelo humor em preto-e-branco que confere a tonalidade que guardo na lembrança daquela cidade nos anos 1960. Quando resolvi colocar tais imagens no livro, decidi que não seriam acompanhadas de legendas, pois pretendia que elas enriquecessem e não explicassem a história da minha família. As fotos devem contribuir com a atmosfera do livro. Você vive hoje em Istambul ou em Nova York? Bem, na verdade, estou em Paris, mas ainda vivo em Istambul. Em alguns momentos, quando a atmosfera se torna um tanto densa demais, vou para meu apartamento em Nova York, em busca de tranqüilidade para escrever. Mas, sempre que posso, volto à Turquia - estive lá, aliás, há dez dias. Sua visão crítica a respeito de seu país criou-lhe uma série de inimigos. O prêmio Nobel contribuiu para aumentar o ódio de seus detratores? Sim, o Nobel não só não resolveu os problemas da minha vida como também os deixou exagerados, aumentados. Claro que não lamento, pois fiquei feliz com o prêmio. Tenho consciência de que meus problemas não desapareceriam com o Nobel, pois não são apenas questões pessoais, mas que envolvem a Turquia. Você foi convidado para formar o júri oficial do próximo Festival de Cannes. Qual é sua expectativa? Essa é a primeira vez que aceitei participar como jurado de um festival de cinema, arte da qual sou um eterno apaixonado. Ainda me lembro do primeiro que assisti, em 1966, em Istambul, Doze Mil Léguas Submarinas, que me deixou fascinado. Desde então, vou sempre ao cinema e, quando era jovem, freqüentei a cinemateca turca em busca de novos tesouros. Enfim, o cinema faz parte da minha história e fiquei muito honrado com o convite de Cannes. A imagem, aliás, é uma peça importante em sua carreira, uma vez que, quando jovem, você pretendeu ser um pintor, como outro escritor, Vladimir Nabokov. É verdade. As pessoas costumam dizer que tenho uma memória visual, o que recebo como cumprimento. Uma das diversões ao escrever Istambul foi o prazer de decifrar, no texto, as imagens que ainda estão muito vivas na minha lembrança. Acho que como aconteceu com Joyce e sua Dublin, ou ainda Jorge Luis Borges e sua Buenos Aires, Istambul me ofereceu uma experiência que me conduziu à arte.

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