A invasão mineira nos palcos de São Paulo

Com estreia de nova coreografia, a companhia Primeiro Ato, de Belo Horizonte, abre caminho a outros grupos

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Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

"Só estou terminando de arrematar esta costura. Você espera só mais um bocadinho, meu bem?", pergunta a costureira do ateliê do estilista Ronaldo Fraga, sotaque mineiro carregado e um maiô colorido nas mãos. Nos fundos de um galpão de Belo Horizonte, os funcionários trabalham até tarde para fazer os últimos ajustes no figurino da companhia Primeiro Ato. Meias, saias de tule, babados. Tudo tem que estar pronto logo. Isso porque o grupo está de malas prontas e deve partir em breve para São Paulo, cidade que escolheu para a estreia nacional de sua nova coreografia, Adorno. O espetáculo faz sua primeira apresentação amanhã, no Sesc Vila Mariana. Mas não deve ser o único representante de Minas a pautar a agenda da cidade.

 

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No sábado, também vêm do Estado vizinho os criadores de outra montagem que movimenta as artes cênicas na capital paulista. A atriz Débora Falabella e a diretora Yara de Novaes, ambas mineiras, se apoiam na literatura do conterrâneo Murilo Rubião para encenar O Amor e Outros Estranhos Rumores. Com a participação especial de Rodolfo Vaz, do grupo Galpão, o Grupo 3 de Teatro leva ao palco três contos do escritor. A perspectiva de explorar o universo fantástico de Rubião, conta Yara, surgiu quando a companhia organizou a Mostra Contemporânea de Arte Mineira, no Sesc Pompeia, em 2008.

 

Em moldes semelhantes, outra mostra marcada para o início de novembro deve traçar um panorama recente da cena de Minas. Depois da experiência de gestar um espetáculo em parceria com o Espanca!, coletivo de Belo Horizonte, os paulistanos do grupo XIX de Teatro, organizam o Festival (SP+MG): uma seleta de nove espetáculos, quatro deles mineiros, que serão encenados a partir de 6/11, na sede do XIX, na Vila Maria Zélia. Além das montagens, a programação também contempla uma série de debates sobre a relação entre os grupos dos dois Estados. "Queríamos aprofundar o contato com alguns desses grupos que conhecemos. É como uma horda mineira, uma onda que veio tomando conta da gente", comenta Paulo Celestino, do grupo XIX.

 

Débora Falabella, em cena de 'O Amor e Outros Rumores'. Foto: Rodrigo Hypolitho/Divulgação

 

Arte da delicadeza. Não é de hoje que a produção teatral gestada na terra de Guimarães Rosa desperta elogios. Se nos anos 1980 o País deslumbrou-se com os contornos barrocos do grupo Galpão - com ares de circo e um pé na arte popular - a última década viu surgir uma proposta diversa. Menos festiva e grandiloquente, mais devotada às pequenices do cotidiano. Nos principais festivais de artes cênicas chamam atenção as montagens de contornos delicados, com personagens fortes e um jeito muito particular de fabular sobre o mundo e a vida.

 

A busca pelo afeto e por um apuro em gestos e atitudes esparrama-se do teatro para a dança e encontra espaço no trabalho da companhia Primeiro Ato. Tradicional no cenário mineiro, o grupo descobriu o mote para a nova coreografia bem distante de suas fronteiras, em fotografias sobre duas tribos africanas.

 

À beira do Rio Omo, os povos Mursi e Surma ainda vivem apartados do convívio com a civilização e cultivam o costume de se enfeitar utilizando frutas, raízes e pinturas no corpo. "São imagens que nos remetem a uma memória arquetípica, que não somos capazes de acessar, mas que desperta algo dentro de nós", diz Suely Machado, diretora da companhia e responsável pela coreografia de Adorno. "O título Adorno faz referência à maneira como essas tribos se enfeitam - e fazem disso a sua arte -, mas também é um jeito de evocar a dor de cada um. Essa foi uma pergunta que fiz muito aos bailarinos: ‘qual é a sua dor’?"

 

No palco, as menções ao universo primitivo surgem com ímpeto nas primeiras cenas. Em movimentos calcados essencialmente nos pés e nas mãos. É paulatinamente, porém, que a coreografia ganha matizes mais sinuosos e fluidos. Além de voltar os olhos para nosso passado ancestral - personificado pelas tribos africanas -, a criação de Suely Machado também pretende traçar uma ponte com o futuro, com aquela que acredita ser uma nova sensibilidade, pautada pela realidade digital. "As crianças já sentem o mundo de maneira diferente. Têm uma percepção muito mais aguçada e uma capacidade multi- direcional."

 

Ao longo da obra, todos esses conceitos aparecem mais como lastro do que como referências didáticas. Há corpos que flertam com certa androginia, a sugerir uma fusão de masculino e feminino. E figurinos que valorizam a transparência, um signo revelador da visão que norteia Adorno. Na trilha sonora, composta pelos músicos Lula Ribeiro e Marco Lobo, a música étnica caminha para o rap, em um balé de acento urbano.

 

Nas palavras da coreógrafa, "o que está sinalizado é a passagem do primitivo ao sideral. Chegamos a um ponto de destruição insustentável. Nessa encruzilhada, o caminho natural do homem será o encontro, uma busca pela delicadeza". Como se a mineiridade fosse capaz de contaminar o mundo.

 

Adorno -

Sesc Vila Mariana. Rua Pelotas, 141, telefone 5080-3000. 6ª e sáb., às 21 h; dom., às 18 h. R$ 16. Até 17/10. Estreia nesta sexta.

O Amor e Outros Rumores - Teatro Tuca. Rua Monte Alegre, 1.024, telefone 2626-0938. 6ª e sáb., às 21h30; dom., às 19 h. R$ 30. Até 28/11. Estreia sábado.

Mostra (SP+MG) - Sede do Grupo XIX. Vila Maria Zélia, Rua Cachoeira, esq. com Rua dos Prazeres, 2081-4647. Sáb., às 20h e 23h59; dom., às 19h. Grátis. Estreia em 6/11.

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