A infância como caminho para a recuperação da humanidade

'Lívia e o Cemitério Africano', de Alberto Martins, cresce nos momentos em que se livra do excesso de ideias

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Por Moacir Amancio , MOACIR AMÂNCIO É PROFESSOR , DE LITERATURA HEBRAICA DA USP e AUTOR DE ATA (REUNIÃO DE POEMAS
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Tudo perde legitimidade no entulho contemporâneo do qual a cidade grande torna-se a metáfora mais óbvia e tediosa, de novo, nesta novela chamada Lívia e o Cemitério Africano, de Alberto Martins. Como demonstram, mais uma vez, os passeios da personagem central, um arquiteto, cujo possível talento é descartado, pois não interessa a ninguém. Ele flana pelas ruas molhadas de São Paulo e se perde nelas em busca de algum consolo na criação de croquis e maquetes sem objetivo. Uma arte para nada. A saída inútil talvez seja mesmo o flanar de carro por ruas impraticáveis, e coletar fragmentos conforme eles vêm ao e encontro do narrador. Não faltam ideias ao novelista. O que parece ocorrer, no entanto: levado pelo flanar, o texto se dilui e corre o risco de se perder. A personagem que dá título ao livro, Lívia, a pilantra ilustrada que não chega a ser mito, pois os mitos se esfacelam um a um, contra o cenário da desagregação geral, ou da deglutição geral pelo organismo da cidade. Somente a infância coloca-se como um possível caminho que poderia levar à recuperação do humano a partir do quase zero, mas a infância também é descartável. Primeiro, Lívia, para agir alegremente mundo afora, no contrabando de fósseis, entrega o filho doente ao tio, irmão de seu ex-namorado, que o adota e estabelece com o garoto uma relação semipaternal, até que no fim, a mãe, pelo jeito aposentada depois de pegar cadeia e se livrar das grades de modo tão rápido quanto tinha sido presa, pega o menino de volta sem mais aquela. O aniquilamento da infância ainda é tema de um episódio no qual o autor prova seu talento, um talento bem mais apurado quando se livra do excesso de ideias e fecha o foco em determinados momentos, como na relação do arquiteto e a mãe desmemoriada. E é o caso de Guido, dramático, intenso, pleno: um adolescente italiano se envolve com os alemães na 2ª Guerra, passa a trabalhar para eles na cozinha e fazendo graças. Quando os alemães são vencidos, ele é apanhado pelos compatriotas resistentes e acaba liquidado como por desfastio. É o melhor contraponto para o cemitério de fósseis africanos explorados por Lívia, que lhe garantem a fantasiosa alforria financeira. )LÍVIA E O CEMITÉRIO AFRICANOAutor: Alberto MartinsEditora: 34 (160 págs., R$ 34)

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