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A grande belorizontal

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Com o risco de você achar que sou autoridade no assunto, vou encompridar a conversa da semana passada, quando falei de Suzana Castera – importação francesa que veio a ser a cafetina-mor de um Rio de Janeiro que dobrava o cabo do Império e entrava na República, figura a mais de um título pública, capaz de sensibilizar, malícia à parte, membros dos dois regimes e de todos os Poderes. Numa curva do papo, resvalei noutra grã empresária da luxúria, a espanhola Olímpia Vasques Garcia, que foi, pouco mais adiante, o equivalente de madame Castera na então adolescente capital de Minas. Merecedora, por certo, de mais que mera escala na conversa. Ao contrário da Suzana, que antes de se estabelecer como dona de bordel balangou as pernocas em espetáculos fesceninos, a Olímpia começou por baixo, balangando a bolsinha numa cidade recém-tirada do nada, letárgica ao ponto de dar ao visitante Monteiro Lobato a impressão de que as raras criaturas nas ruas ali estavam no papel de transeuntes.  A espanholinha de Segovia, conta Pedro Nava em Beira-mar, “chegara a Belo Horizonte mundana comum, exercera, juntara dinheiro, abrira sua pensão, amealhara mais, dera as primeiras danças no porão habitável do seu bordel na avenida Oiapoque, economizara furiosamente, investira abrindo o Éden Cabaré, fora logo de vento em popa”.  Era ali que o jovem Nava, estudante de medicina, ia bebericar, dançar e, eventualmente, “ficar” – sim, o verbo já tinha, quase cem anos atrás, uma acepção sexual, significando dormir com mulher-dama. Foi no cabaré da Olímpia, ele conta, que veio a entender o tango argentino, “esse triângulo musical que comporta um ângulo macho, um ângulo fêmea e um ângulo bicha”. Também seu cupincha Carlos Drummond andou por lá. Não se sabe se terá ficado, pois não se derramou em lembranças, como Nava – mas deixou pegadas num poema em que evoca o fuzuê da visita dos reis da Bélgica a Belo Horizonte, em 1920: “Jorra cerveja nos cabarés enfumaçados de cigarro. / Madame Olímpia, a respeitável, / faz a mais gorda féria do seu Éden”.  Obeso, o caixa da cafetina lhe permitiu saltar para espaço ainda mais caprichado, o Palácio. Depois veio o Montanhês Dancing, e por décadas houve sempre um cabaré da Olímpia, “a quem sucessivas gerações de estudantes sempre ficaram a dever alguma coisa”, credita em suas memórias Paulo Pinheiro Chagas. Um daqueles moços de finanças curtas foi Cyro dos Anjos, futuro romancista de O Amanuense Belmiro, que recordará os ambientes onde “maridos malandros” e “solteirões empedernidos” iam “enganar seu tédio”.  Os salões da espanhola – “grande belorizontal” que Nava descreve com detalhes de naturalista, sem esquecer “a expressão fria e cruel” e a “simplicidade quase sórdida” no vestir-se – gozavam de reputação federal. Em 1934, no Rio, o jornal satírico A Manha, de Aparício Torelly, o Barão de Itararé, transcreveu suposto telegrama em que ferroviários da Rede Mineira de Viação, em luta por aumento salarial, mostravam desalento ao constatarem a ineficácia de seu poderoso pistolão: “D. Olímpia Vasques Garcia”, choramingaram, “dama virtuosa cheia de predicados alabastrinos, real ornamento da sociedade, tem feito tudo em nosso benefício, sem resultado”. A exemplo de Suzana Castera no Rio de Janeiro, ela dispunha de amizades e influência em altas cavalariças. Pouca importância fazia se escandalizava a família mineira ao desfilar de capota arriada em companhia das mais recentes aquisições de seu plantel, para anunciá-las à clientela.  Em seu cabaré não se entrava sem o sinal verde do Antônio Grande, “mulatão muquiço”, reconstitui Nava, “alto de dois metros, trunfa, costeletas, peitorais deltóides estufados de rasgar a roupa, modos suaves, falas macias, olhos doces e queixada bestial”. Dentro, nada escapava ao olhar aquilino da cafetina, que tinha sempre à mão um argumento capaz de dissuadir os inconvenientes: um pé de meia contendo bola de bilhar, arma que em casos extremos a Olímpia fazia girar como devastadora maça medieval. Na alta maturidade, a agressividade deu lugar à mansuetude. Diz Pedro Nava que ao morrer, em 1972, aos 84 anos, Olímpia Vasques Garcia se achava convertida em dama virtuosa, além de “udenista enragée”, capaz de legar sua fortuna à Prefeitura da cidade que lhe abrira os braços e as calçadas.

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