A função da presa num mundo de predadores

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Por Luiz Zanin Oricchio
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A Caça pode ser definido como um filme sobre pedofilia, mas, de fato, seu tema maior é tendência social para eleição de bodes expiatórios. Quem não tiver memória curta vai se lembrar do caso da Escola Base e do linchamento moral de uma série de pessoas, responsabilizadas por um crime que nunca existiu.Na história proposta pelo dinamarquês Thomas Vinterberg, Lucas (Mads Mikkelsen) é um monitor de escola infantil. Ele se recupera de um divórcio e tenta manter viva a relação com o filho adolescente. Uma garota o acusa de havê-la molestado. De imediato, fecha-se em torno de Lucas um círculo de adultos dispostos a julgá-lo, condená-lo e puni-lo.O filme é corajoso, pois coloca em dúvida o dogma contemporâneo da inocência absoluta da infância. Quer dizer, domina entre nós um curioso pensamento pré-freudiano. Vale a pena lembrar como a psicanálise nasceu. No início de sua carreira, Freud ficou chocado com a quantidade de pacientes que se queixavam de terem sido molestados sexualmente na infância, em geral pelos próprios pais. Por um momento, pensou viver numa sociedade de pervertidos. Ele mesmo, em sua autoanálise, julgou ter sido vítima de ataque sexual do pai. Logo, porém, percebeu que os relatos tinham muito mais a ver com fantasias das crianças do que com ataques reais.Em linguagem seca e direta, Vinterberg olha para essa característica do psiquismo humano, a de tratar fantasia como realidade. Sua mirada vai além: mostra, também, como fica difícil controlar a situação quando forças sádicas despertam numa comunidade. Há um desejo inconfessado de agressão que mora num canto escuro de todos nós. No fundo, nos alegramos quando encontramos alguém em quem projetar nossas pulsões destrutivas. Basta olhar em torno. E, sobretudo, em nós mesmos.No caso de Vinterberg, a escolha é a de uma situação aguda. A infância (supostamente) ultrajada, uma cidade pequena na qual todos se conhecem e portanto a intimidade é nula, uma cultura máscula e de caça - daí o título. Os homens seriam predadores naturais. A "civilização" empresta certa normalidade a essa característica sob a forma da caça como modalidade esportiva. Mas não é preciso muito para que a violência "normal" extrapole de um campo permitido para o conjunto da sociedade. É essa análise radical que empresta ao filme todo o seu interesse.

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