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A fragilidade do herói

Luís Alberto de Abreu encontra em São José dos Campos parceiros para experimentar novos rumos em sua arte

Por Beth Néspoli
Atualização:

  À primeira vista parece imensa a ambição de Luís Alberto de Abreu. Poeta dos palcos, ele atingiu aquele ponto da carreira em que poderia tranquilamente usufruir as conquistas adquiridas e serenamente tirar proveito de sua maestria no manejo das palavras criando peças no conforto do já sabido. Porém, esse autor de dezenas de textos, entre eles O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem, e o roteiro adaptado da minissérie Hoje É Dia de Maria, quer mais. Sua inquietação o leva a arriscar-se na experimentação de novos rumos para sua arte.

Canções. Leia a íntegra das letras das três músicas

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Abreu persegue uma mitologia capaz de renovar estruturalmente sua dramaturgia, quiçá além dela. Busca tomar como base outros arquétipos em substituição ao herói guerreiro, competitivo e individualista, "figura central e organizadora da Cultura", como ele define (leia ao lado). Gostaria de ver atuando sobre a sensibilidade dos espectadores protagonistas, cuja força estivesse fundada em valores femininos ou infantis, como a fragilidade e a imaginação.

Utopia? Sim, ele sabe o grau de dificuldade da tarefa que se impôs. "Não concordo que a ambição seja sem tamanho, mesmo porque não creio que seja só minha, nem eu daria conta sozinho dela. Não é a fundação de outra mitologia, mas sim uma procura por colocar à luz os valores e as imagens femininos soterrados por cinco milênios de tradição patriarcal. Não é fácil, é certo. A mitologia das culturas agrárias matrilineares do neolítico não foi escrita e muito dela se perdeu e foi modificada e usurpada pelo patriarcado", diz Abreu.

Mas encontrou um grupo disposto a iniciar o que promete ser, para Abreu, uma longa aventura. E na noite de quarta-feira, às vésperas do feriado de Semana Santa, o Estado foi até São José dos Campos acompanhar a estreia de Um Dia Ouvi a Lua, texto em que esse autor experimenta a inversão dos valores do "macho adulto branco sempre no poder", a partir das narrativas de três composições muito conhecidas do cancioneiro popular brasileiro (veja abaixo) recriando-as do ponto de vista feminino.

Ritos. A história da primeira canção, Adeus, Morena, Adeus, do violeiro que prefere seguir errante a casar-se, é abordada do ponto de vista das crianças que observam "a louca da estação", a mulher presa ao passado. Não há "virada de jogo", o que o autor expõe é a dor causada pelo cumprimento do ritos masculinos, não só no casal, mas também no pai cumpridor do dever de "surrar" a filha. Na segunda, Cabocla Tereza, a mulher igualmente não escapa de seu fim, mas ainda que "morta" ela aparece altiva, ganha voz e conta seu trágico fim de seu ponto de vista, com seu matador já transformado em penitente. E é só na última história, Rio Pequeno, que a intervenção vem forte. A menina sai da casa do pai no cavalo do amado, mas no caminho observa a violência masculina na forma de esporear o cavalo e foge, não por acaso, para o mato. Ali faz sua individuação. O homem a reconquista não pela força, mas justamente por "deixar escapar" sua fragilidade.

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Pouco antes de subirem ao palco para cantar essas canções numa roda de viola - espécie de prólogo de Um Dia Ouvi a Lua -, os intérpretes preparam-se diante do espelho no camarim do Sesc de São José. É evidente o entusiasmo das quatro atrizes e dois atores da Cia. Teatro da Cidade, fundada e dirigida por Claudio Mendel, que comemora 20 anos de existência e acaba de ganhar de presente da irmã de Andréia Barros, uma das atrizes fundadoras, uma espaçosa sede na cidade. Um Dia Ouvi a Lua é uma criação especial de aniversário. Há dez anos, Abreu havia escrito um dos maiores sucessos da companhia, Maria Peregrina. Daí o convite para ele escrever o texto de um projeto apoiado pelo Programa Estadual de Apoio à Cultura (Proac) e intitulado Universo Caipira - As Histórias Que o Vale Conta. "É aquela máxima de que a gente pode falar ao mundo a partir de nosso quintal", observa Mendel.

O grupo convidou ainda para a direção do espetáculo Eduardo Moreira, ator e diretor fundador do grupo mineiro Galpão, o premiado Leopoldo Pacheco para criar figurinos e cenografia e o compositor Beto Quadros para a direção musical e preparação dos atores. Havia um desejo de dar um salto de qualidade. "Se a gente repete o que deu certo, vira fórmula", diz Mendel. Mas não esperavam tantos desafios.

Beleza. Abreu trabalhou em processo colaborativo, ou seja, os atores criavam cenas e ele escrevia o texto aos poucos, a partir do material proposto. Porém, como ponto de partida, entregara um canovaccio, um argumento, já com a proposta da inversão sobre as três canções. "Eduardo Moreira propôs trabalhar a partir de brincadeiras de crianças, ideia que Abreu pegou com rara felicidade", diz Mendel. A beleza visual do espetáculo, a ambientação sonora, a delicadeza do canto (que vem até a capela num dado momento e chega a ser realizado a três vozes) e a bem-sucedida apropriação da prosa poética de Abreu mostram que o grupo atinge novo patamar de aprimoramento com esse espetáculo. Depois de circular pelo interior de São Paulo, deve chegar no segundo semestre à capital.

"Ao abandonar a trajetória do herói, eu abandono também uma forma dramática tradicional, mas a forma dessa ruptura ainda não sei qual é. Estou flertando com o teatro nô. Este espetáculo tem muito de inspiração do nô, não o nô formal, mas da essência dele." É conferir esse e aguardar os próximos.

PROGRAMAÇÃO

Amanhã

20 h

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Centro Cultural Municipal de Taubaté

Praça Coronel Vitoriano, 1,

centro

Dia 29

20h30

Teatro Municipal de São

Sebastião

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Rua Altino Arantes, 2, centro Histórico da cidade

Dia 30

20h30

Auditório de Paraibuna

Praça Monsenhor Ernesto A. Arantes, 64, centro

Dia 7/5

20 h

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Auditório Maristella de

Oliveira

Rua Santa Cruz, 396, centro, Caraguatatuba

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